A ADMISSIBILIDADE DA TEORIA DA “ACTIO LIBERA IN CAUSA”

 

Autora: Lívia Nogueira Ramos

Bacharel em Direito

 

                Denomina-se “actio libera in causa” a ação de quem usa deliberadamente um meio para colocar-se em estado de incapacidade física ou mental, parcial ou plena, no momento da ocorrência do fato criminoso. É também a ação de quem, apesar de não ter a intenção de praticar o delito, podia prever que tal meio o levaria a cometê-lo. Em outras palavras, é a ação de se deixar ficar num estado de inconsciência, com a intenção de praticar um delito. A teoria da “actio libera in causa” foi adotada na Exposição de Motivos original do CP de 1940, de modo que considera-se imputável quem se põe em estado de inconsciência ou de incapacidade de autocontrole, seja dolosa ou culposamente, e nessa situação comete o crime. Ao adotar tal orientação, o CP adotou a doutrina da responsabilidade objetiva, pela qual deve o agente responder pelo crime. Portanto, essa teoria leva em conta os aspectos meramente objetivos do delito, sem considerar o lado subjetivo deste. Considera-se a responsabilidade penal objetiva quando o agente é considerado culpado apenas por ter causado o resultado. Frente ao princípio constitucional do estado de inocência e à teoria finalista adotada pelo Código Penal, é inadmissível a responsabilidade penal objetiva, salvo nos casos da “actio libera in causa”. Ë que para a teoria finalista, não se pode dissociar a ação da vontade do agente, já que a conduta é precedida de um raciocínio que o leva a realizá-la ou não. O dolo e a culpa fazem parte da conduta, que é comportamento humano, voluntário e consciente, dirigido a uma finalidade.

                Com a reforma da Parte Geral do CP, introduzida pela Lei 7.209, de 11.7.1984, apregoou-se a abolição de quaisquer resíduos de responsabilidade objetiva, mas o fato é que alguns destes ainda remanescem na legislação penal, como ocorre nos casos de embriaguez culposa ou voluntária completa, exemplificando.
                A doutrina, de modo geral, costuma situar as origens da teoria da “actio libera in causa” nas proposições de Aristóteles. Após, na Idade Média, o Direito canônico aplicava a doutrina de Santo Agostinho, que entendia que a embriaguez era o único ato voluntário cometido nessa cadeia de acontecimentos, e constituía, em si mesmo, a causa final da conduta delitiva. No período dos jurisconsultos italianos se elaborou a formulação que conhecemos hoje em dia.

                A doutrina até hoje não é unânime na hora de definir o significado e tratamento que a “actio libera in causa” recebeu em suas primeiras formulações.
                Quanto ao âmbito de incidência, para alguns autores, a “actio libera in causa” só se relaciona com as condutas nas quais o sujeito se põe deliberadamente em estado de inimputabilidade com o propósito de cometer um delito (intoxicação pré-ordenada). Outros aplicam a teoria da “actio libera in causa” a todas as condutas cometidas pelo sujeito que se intoxica dolosa ou culposamente, independentemente de existir uma prévia intenção direcionada à prática delitiva. Nestes casos, se atribui responsabilidade penal pelo fato cometido em estado de inconsciência, atendendo à livre escolha que o sujeito teve ao intoxicar-se ou embriagar-se. Assim também opinava Mezger, o qual, mesmo tendo apontado a necessidade de coincidência entre a imputabilidade e o tempo da execução da ação, entendia que isto não impede “el castigo de las llamadas actiones liberae in causa.
Por tales han de entenderse aquellas acciones en las que el sujeto establece la causa decisiva en un momento en que es imputable, mientras que, en cambio, su conducta corporal sólo de desenvuelve en un tiempo en que su imputabilidad está ausente.” Em sentido contrário, adotando una postura restritiva do conceito, opina Cezar Bitencourt:

                “A actio libera in causa, fundamenta a punibilidade de ações praticadas em estado de embriaguez não acidental. No entanto não abrange aquelas situações em que o agente quer ou imprudentemente se embriaga sem prever ou poder prever a ocorrência de um fato delituoso. Nelas o que é livre na causa não é a ação criminosa, mas somente a embriaguez. Poderá o agente praticar um ilícito penal em estado de embriaguez, que era absolutamente imprevisível, no momento ou antes da embriaguez. E quando há imprevisibilidade não se pode falar em “actio libera in causa”, diante da impossibilidade de se relacionar esse fato a uma formação de vontade contrária ao Direito.”


                Há autores que fazem restrições à extensão da aplicabilidade da teoria da “actio libera in causa”, sem negar sua aplicação.   Mirabete diz que “Na lei brasileira, porém, não se exclui a imputabilidade pela embriaguez não preordenada, se voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos.” Ou seja, o legislador brasileiro adota um conceito amplo que, para o autor referido, constitui uma “forçada aplicação do princípio da “actio libera in causa”.
O perfil da construção legislativa brasileira a respeito do tema, tem sua origem nas idéias de Nélson Hungria , para quem mesmo nos supostos de embriaguez voluntária ou culposa, responderá o sujeito segundo o elemento subjetivo do delito cometido, em razão da existência de uma vontade residual que dirige a atividade ilícita. Entende que a embriaguez não elimina completamente o discernimento e portanto, deve ser reconhecida a responsabilidade penal de acordo com o elemento subjetivo próprio do delito praticado.
                Para alguns doutrinadores, a aplicação dessa teoria constitui resquício da responsabilidade objetiva em nosso sistema penal e pode ser admitida excepcionalmente quando for de todo necessário para não deixar o bem jurídico sem proteção.

                Para outros penalistas, o Código Penal Brasileiro, quando determinava a aplicação da “actio libera in causa”, sem dúvida nenhuma admitia a responsabilidade penal objetiva. A situação alterou-se com a Constituição Federal de 1988, que, em seu artigo 5º, LVII , introduziu o princípio do estado de inocência, não mais permitindo-se a interpretação da legislação penal substantiva com a presença da responsabilidade penal objetiva, o que leva-se a concluir pela inaplicabilidade da teoria acima citada.
                Correto é o posicionamento de Fernando Capez, quando afirma que "ainda existem casos em que se mantêm resquícios de responsabilidade objetiva em nosso sistema penal, quando imprescindível para a proteção do bem jurídico" . A actio libera in causa é um desses casos. A fim de que o agente não fique imune à ação punitiva estatal e o bem jurídico sem tutela, na embriaguez não acidental leva-se em conta, exclusivamente, o momento em que o sujeito escolheu livremente entre consumir ou não a substância.
                Tal teoria não apresenta problemas nenhum ao ser aplicada nos casos de embriaguez preordenada, na qual o sujeito embriaga-se propositadamente para pôr-se em estado de inimputabilidade, a fim de cometer o crime.Quanto aos casos de embriaguez completa, voluntária ou culposa, e não preordenada, onde o sujeito se embriaga completamente porque possui tal intenção, ou porque chegou àquele estado em razão de sua imprudência quando da ingestão do líquido, e chega a delinqüir não porque possui o animus específico, mas porque estava privado da sua capacidade de querer e de autodeterminação, é certo afirmar que a teoria acima citada encontrará dificuldades quando da sua aplicação.
        

 

Lívia Nogueira Ramos

Escrevente Judicial - Gurupi -TO, 12/04/07