EMBRIAGUEZ ZERO AO VOLANTE, INFRAÇÃO DE TRÂNSITO E PENALIDADES ADMINISTRATIVAS: Comentários aos Arts. 165, 276 e 277 do CTB

             João José Leal

            Livre Docente-Doutor – UGF/FURB. Professor do Curso de PósGraduação em Ciência Jurídica – CPCJ/UNIVALI. Ex-Procurador Geral de Justiça de SC e Ex-Diretor do CCJ/FURB - Associado do IBCCrim e da AIDP.

             Rodrigo José Leal

            Mestre em Ciência Jurídica – UNIVALI. Doutorando em Direito – Universidade de Alicante. Professor de Direito Penal – UNIVALI e UNIFEBE.

 

            Resumo

            Neste artigo serão estudadas as alterações inseridas nos textos dos arts. 165, 276 e 277, do Código Brasileiro de Trânsito - CTB, pela Lei 11.705/2008. O primeiro dispositivo descreve a infração de trânsito de conduzir veículo automotor “sob a influência do álcool” e prescreve as respetivas sanções administrativas. O segundo estabelece o teor de “alcoolemia zero” para o motorista ao volante e o terceiro disciplina o procedimento a ser observado para autuação do motorista alcoolizado, com vista à aplicação das respetivas penalidades administrativas. O estudo aborda a ausência de uma política de trânsito estável, seja no plano da prevenção educacional, seja no plano da repressão administrativa e/ou criminal desta grave infração de trânsito. O foco principal deste estudo está voltado para os métodos e procedimentos de aferição da taxa de alcoolemia no sangue do motorista e conclui que, no caso de recusa do motorista em se submeter a qualquer um dos exames e testes, é válida a constatação desta infração de trânsito e conseqüente aplicação das penalidades administrativas pelo agente de trânsito.

 

 

 

         Palavras-Chave:

         Alcoolemia. Código de Trânsito Brasileiro. Embriaguez ao Volante. Infração de Trânsito. Multa de Trânsito. Taxa de Alcoolemia. Teste de Alcoolemia.

 

            Resumé

         Dans cet article seront étudiées les modifications apportés auxs articles 165, 276 e 277, du Code Brésilien de Route – CTB, par la Loi 11.705/2008. Le premier dispositif décrit l’infraction routière de conduire vehicule automoteur « sous l’influence de l’alcool – et prescrit les sanctions administratives. Le second dispositif établit la politique de « tolerance zero » pour le conducteur alcoolisé et le troisième établit la procédure administrative qui doit être observée pour responsabiliser le conducteur alcoolisé et pour aplliquer les respectives peines administratives. L’étude fait mention à l’absence d’une politique routière stable, soit dans le plan de la prévention éducationale, soit dans le plan de la répression administrative et/ou criminelle pour cette grave infraction routière. Le sujet principal de cette étude se restreint à examiner les méthodes et procédures pour mésurer le taux d’alcool dans le sang du conducteur et il conclut que, dans le càs où le conducteur réfuse a se soumettre à quelqu’un des examens et tests, est possible et legitime la constatation de cette infraction routière et conséquent aplication des peines administratives fondée sur un rapport établit par l’agent de la políce routière.

            Mots-Clés :

         Code Brésilien de Route. Alcoolisme Automobile. Infraction Routière. Amende Routière. Taux d’Alcoolisme.

 

         Sumário:  

            1. Introdução: Ausência de uma Política de Trânsito Estável sobre Embriaguez ao Volante. 2. Infração de Trânsito de Conduzir Veículo Automotor sob a Influência do Álcool ou de outra Substância Psicoativa (Art. 165). 2.1. Alteração Parcial da Dicção Contida no Caput do Artigo. 2.2 Desnecessidade de uma Taxa Mínina de Concentração de Alcool no Sangue para Configuração da Infração de Trânsito de Embriaguez ao Volante. 2.3 Significado da Expressão “Dirigir sob a Influência de Álcool”. 2.4 Primeiras Liminares Concedidas Pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina. 3 Alteração Referente às Penalidades Administrativas. 4. Margens de Tolerância para Casos Especiais. 5. Procedimento para Apurar a Presença de Álcool no Sangue do Motorista. 5.1 Abordagem pelo Agente de Trânsito para Constatar o Uso de Álcool pelo Condutor de Veículo Automotor. 5.2 Tipos de Exames e Testes de Alcoolemia Previstos em Lei. 5.3 Constatação pelo Agente de Trânsito do Uso de Alcool e Recusa do Motorista em se Submeter ao Teste ou Exame de Alcoolemia. 5.4 Legitimidade da Norma que Atribui Competência ao Agente de Trânsito para Autuar Motorista que se Recusa ao Teste ou Exame de Alcoolemia. 6. Conclusões. 7, Bibliografia.   

 

 

 

            1. Introdução: Ausência de uma Política de Trânsito Estável sobre Embriaguez ao Volante

            A questão da embriaguez ao volante tem sido causa de polêmica constante. Primeiro, pelo grande número de acidentes de trânsito com vítimas fatais. As estatísticas não são precisas. As informações mais freqüentes apontam para o trágico número superior a 35 mil de mortes, a cada ano, nas estradas e vias públicas deste país.[1] Os acidentes de trânsito são hoje uma das principais causas de morte no país. O número de vítimas não fatais ultrapassa a casa a 400 mil.[2] Isto já seria suficiente para que o foco de nossa preocupação permaneça voltado para este grave problema.

            Em segundo lugar, a polêmica se intensifica e encontra motivação no vácuo deixado pela falta de uma política de trânsito estável, seja no plano da prevenção educacional, seja no plano da repressão administrativa e/ou criminal. Assim, a cada mudança legislativa pontual sobre o trânsito em geral e sobre a questão da embriaguez ao volante, em especial, a polêmica se torna mais intensa, propiciando a oportunidade de manifestação das posições mais antagônicas.

            Mesmo que não saibamos o número correto (fato bastante lamentável), é evidente que pagamos, a cada ano, um elevado preço em vidas humanas e em seqüelas físicas e psicológicas pela imprudência etílica de nossos motoristas. Se esta criminosa imprudência é censurável e justifica o controle administrativo e penal do poder estatal, não é menos lamentável a ausência de uma Política de Trânsito adequada, estável, bem definida e cumprida com o rigor que o problema exige.[3]

            Esta última assertiva fica evidenciada quando verificamos que o Código Brasileiro de Trânsito - CTB, em sua relativa curta existência vigencial, já foi objeto de duas alterações no que diz respeito à repressão dos condutores que dirigem sob a influência de álcool. A primeira veio por meio da Lei 11.275/2006, que alterou parte dos textos dos artigos que serão aqui examinados.   A segunda, mais recente, aconteceu por meio da Lei 11.705, de 19 de junho de 2008, cujas alterações inseridas no texto do CTB, continuam causando intensa manifestação da opinião pública, dos meios de comunicação social[4] e, obviamente, da classe jurídica. Apesar dessa intensa repercussão, a experiência indica que, com o passar do tempo, as ações policiais irão arrefecendo e retornarão ao ritmo das intervenções esporádicas. Por isso, é profundamente lamentável essa onda fiscalizatória meramente ocasional e passageira, porque o importante para a segurança do trânsito é a existência de um sério, efetivo e permanente programa de fiscalização executado por agentes de trânsito devidamente capacitados e dotados dos equipamentos mais adequados. 

            Neste artigo, o foco de nosso estudo ficará restrito ao exame das alterações de natureza administrativa introduzidas por esta última lei, nos textos dos arts. 165, 276 e 277 do CTB. O primeiro destes dispositivos prescreve a conduta proibida e as “penalidades mais severas para o condutor que dirigir sob influência do álcool”. O segundo estabelece o teor de “alcoolemia zero” para o motorista ao volante e o terceiro disciplina o procedimento para autuar o motorista alcoolizado, com vista à aplicação das respetivas penalidades administrativas.

 

            2. Infração de Trânsito de Conduzir Veículo Automotor sob a Influência do Álcool ou de outra Substância Psicoativa (Art. 165)

         2.1. Alteração Parcial da Dicção Contida no Caput do Artigo

            Trata-se da infração tipificada no art. 165, do CTB. Cabe observar que o texto original deste dispositivo já havia sido objeto de modificação por meio da Lei 11.275/06, para o fim de excluir a exigência de um patamar “superior a seis decigramas de álcool por litro de sangue”, como requisito configurador desta infração administrativa. Com a recente alteração, o preceito primário que define a conduta proibida está agora assim redigido:

            “Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: Infração – gravíssima”.

            Comparando-se com o texto anterior,[5] podemos verificar que o caput do artigo foi objeto de modificação apenas redacional para adequá-lo à linguagem médicojurídica referente às substâncias naturais ou químicas capazes de causar dependência. Assim, foi abandonada a velha expressão “substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica”. Agora, a norma refere-se à “qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”. Trata-se, portanto, de alteração que visou tão somente atualizar a semântica legislativa do texto legal em exame e que ficou mais objetivo e claro. Na doutrina médicojurídica sobre drogas, sempre houve restrição à expressão “substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica”. Entendia-se que a mesma não correspondia à certeza e exatidão de um verdadeiro conceito científico. Por isso, a mudança, embora meramente formal, tinha sua justificativa.

            Porém, a nova redação do art. 165, do CTB, pode ser criticada por ter se afastado da nomenclatura recentemente adotada pela Lei 11.343/06 – Lei Antidrogas - que não utiliza a expressão “substância psicoativa”, mas tão simplesmente “drogas”, assim entendidas como “substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União”.[6] Assim sendo, perdeu o legislador o caminho da uniformização em termos de nomenclatura jurídica acerca de um mesmo objeto de controle administrativo e penal.

            A crítica, a nosso ver, tem tanto mais razão quanto se sabe que a substância psicoativa de uso proibido antes de dirigir veículo automotor, além do álcool, é evidente, só pode ser uma daquelas chamadas de entorpecentes, psicotrópicas e outras sob controle especial, relacionadas na Portaria SVSMS nº 344/98.

            Quanto às bebidas alcoólicas capazes de exercer influência e comprometer a capacidade normal de conduzir veículo em via pública, a própria Lei 11.705/08 é taxativa em definir como sendo “as bebidas potáveis que contenham álcool em sua composição, com grau de concentração igual ou superior a meio grau Gay-Lussac” (art. 6º).

 

            2.2 Desnecessidade de uma Taxa Mínina de Concentração de Alcool no Sangue para Configuração da Infração de Trânsito de Embriaguez ao Volante

            A atual redação dada ao caput do art. 165, manteve a expressão “sob a influência de álcool” [...], utilizada já no texto original do CTB. A lei, portanto, não exige um estado de embriaguez propriamente dito, no sentido médicolegal do termo,[7] mas sim que o motorista esteja conduzindo sob influência do álcool. Assim sendo, para fins de configuração da infração administrativa de trânsito aqui estudada, já não há mais necessidade de o condutor apresentar uma taxa mínima de álcool no sangue, conforme prescrevia o texto original do dispositivo e que foi objeto de alteração posterior.[8] Muito menos, exige a norma que o motorista seja portador de embriaguez completa ou plena. Em consequência, de acordo com o texto legal, basta que o mesmo tenha ingerido e se encontre sob influência de qualquer tipo de bebida alcoólica para que seja autuado e punido com as severas sanções administrativas previstas no preceito secundário da norma de trânsito sob comentário.

Cremos que o abandono de um patamar mínimo de seis decigramas por litro de sangue teve por objetivo esvaziar a polêmica doutrinária, que se formou em torno do fato de que o álcool atua de forma distinta, segundo o grau de resistência de cada organismo humano. Discutia-se, por isso, se era justo e razoável punir de modo uniforme e isonômico, situações que, na prática, poderiam ser desiguais. A mudança teve, também, um outro objetivo, de natureza mais pragmática: permitir a constatação da presença de álcool no sangue do motorista, por outro meio de prova, além dos exames periciais. Na hipótese bastante comum de recusa do condutor em se submeter a qualquer um destes exames médicos ou técnicocientíficos, o texto legal está agora reformulado para abranger possíveis casos de autuação de motorista alcoolizado por simples constatação do agente de trânsito.

            Portanto, parece que a intenção do legislador foi a de punir com “tolerância zero” quem ingerir bebida alcoólica e, em seguida, for encontrado ao volante de um veículo. Tanto é que, nos termos do art. 276, em sua nova redação, “qualquer concentração de álcool por litro de sangue” é agora suficiente para caraterizar a infração de conduzir sob a influência de substância etílica.[9] É a opção, em termos de Política Criminal do trânsito - e conforme está expressamente consignado no art. 1º da Lei em estudo - por um controle administrativo de tolerância zero em face de motorista embriagados.

            No entanto, parece-nos que a redação dada ao texto da lei expressa um sentido diferente dessa possível intenção do legislador. É o que veremos a seguir.

           

            2.3 Significado Jurídico da Expressão “Dirigir sob a Influência de Álcool”

            No entanto, se o legislador teve o propósito de punir administrativamente o condutor que apresente qualquer concentração de alcoolemia a partir de zero, não podemos deixar de ressaltar que a redação do caput do art. 165, não foi feliz e não sinaliza corretamente neste sentido semântico, nem jurídico. A nosso ver, ao usar a expressão sob influência de álcool, a norma deixa entender que é preciso, necessariamente, a constatação de concentração de álcool no sangue em nível suficiente para causar efetiva influência na capacidade normal do motorista conduzir veículo automotor. Isto porque, se após a ingestão de pequena quantidade de álcool, o condutor pode manter sua capacidade normal, não se pode dizer que esteja conduzindo ”sob a influência do álcool”. Parece claro que esta expressão tem um significado que vai além da ingestão de um simples gole de bebida alcoólica para expressar um estado, mínimo que seja, de ausência das condições normais e indispensáveis para dirigir.

            Na doutrina, Damásio de Jesus entende que a expressão “sob a influência do álcool” é elemento subjetivo ou circunstância elementar da infração administrativa em estudo. Nossa posição, é de que se trata de elemento normativo do tipo. Mas não diverge da posição aqui assumida, afirmando que a infração administrativa em estudo “não se perfaz com a simples direção do veículo, após o condutor ingerir álcool ou substância similar”, sendo indispensável que a direção veicular ocorra “sob a influência dessas substâncias”.[10] Por isso, considera “falso o entendimento de que, encontrado o motorista dirigindo veículo na via pública com qualquer concentração de álcool fica sujeito às penalidades previstas no art. 165, do CTB”.[11]

            Em consequência, parece-nos afrontar o princípio da razoabilidade punir, mesmo que seja na esfera do Direito Administrativo - apenas por ter ingerido uma pequena quantidade de bebida alcoólica – o motorista em condições normais de conduzir. A nosso ver, pela dicção da lei, a infração somente estará configurada quando o motorista apresentar concentração de álcool no sangue com o potencial de exercer certa influência na sua capacidade normal de conduzir veículo automotor e, em consequência, de constituir um perigo para a segurança no trânsito. Tanto é que, conforme veremos abaixo, o parágrafo único do art. 276, admite margens de tolerância de álcool no sangue como excludentes da infração de trânsito aqui estudada.

            Porém, entendemos que, para caraterizar a infração de trânsito sob exame, não há necessidade de que o motorista esteja dirigindo em ziguezague, invadindo o sinal vermelho ou em alta velocidade. Mas, sim, que a taxa de alcoolemia apresentada indique um estado de embriaguez suficiente para comprometer a capacidade normal de conduzir. Para a ciência médica, esse estado de embriaguez comprometedor da capacidade de dirigir inicia com uma taxa igual ou superior a 0,6 decigramas de álcool no sangue do motorista.  

            Na verdade, e apenas para argumentar, se o propósito do legislador era o de punir o motorista que ingeriu qualquer quantidade de álcool, deveria ter dado uma outra redação ao artigo 165, como por exemplo: “Dirigir logo após a ingestão de qualquer quantidade de bebida alcoólica”... Se assim tivesse sido, bastaria a presença de qualquer quantidade de álcool no sangue, para que a infração administrativa estivesse devidamente configurada.[12] Se o texto legal assim não sinaliza, não cabe ao interprete dar à expressão “sob influência do álcool” um significado mais severo para fins de repressão ao motorista que tenha feito uso de pequena quantidade de bebida alcoólica.

            Daí o equívoco ou, ao menos, o transtorno hermenêutico criado pela Lei 11.705/08. De forma expressa, prescreve alcoolemia zero em seu art. 1º e nova redação que deu ao art. 276, do CTB. No entanto, exige que o motorista esteja dirigindo “sob a influência do álcool”, circunstância que exige determinada taxa de concentração de álcool no sangue do condutor.   

            Nossa opinião é a de que o Estado somente poderia proibir e sancionar, administrativa ou penalmente, o motorista que apresente determinado índice de concentração alcoólica no sangue, índice este que poderia ser fixado em nível igual superior a seis ou oito decigramas de álcool por litro de sangue (ou 0,3 ou 0,4 mg/l de álcool no ar expelido dos pulmões). O critério originalmente adotado pelo CTB era de seis decigramas e nos parece mais razoável. Assim, seria sancionado somente o motorista que tivesse superado esse patamar mínimo, claro e bem definido de tolerância do uso de bebida alcoólica. A partir daí ficaria estabelecida a presunção de perigo efetivo ou de capacidade plena para conduzir veículo automotor.

            Fixado tal nível de alcoolemia no sangue e, por ser infração de natureza administrativa, sua configuração não exigiria a demonstração de estar o motorista sob a influência de álcool, muito menos de estar dirigindo de forma a colocar em risco a segurança do trânsito. Esta circunstância fática somente seria exigida como elemento normativo do tipo penal e não da infração administrativa sob exame. Para a sua configuração, o perigo já seria presumido pela presença da taxa de álcool superior ao nível legal mínimo permitido. Porém, haveria um espaço de tolerância, para evitar a punição motoristas com taxa de alcoolemia mínima e insuficiente para comprometer a capacidade de conduzir veículo automotor.

            Ai, sim, no caso de recusa do motorista submeter-se a teste ou exame de alcoolemia, conforme veremos abaixo, caberia ao agente de trânsito proceder à devida autuação, desde que tenha constatado, por evidências devidamente relatadas, o uso de álcool pelo condutor.

 

            2.4 Primeiras Liminares Concedidas Pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina

            A intensa polêmica causada pela nova lei já chegou aos tribunais. No TJSC, as divergências são evidentes. Os dois primeiros pedidos de Habeas Corpus tiveram suas liminares deferidas para garantir o direito do impetrante recusar-se a se submeter ao teste do bafômetro. No primeiro caso,[13] entendeu o desembargador que a ilegalidade da exigência do teste de alcoolemia somente “é verificada em casos em que o condutor do veículo não aparenta estar sob a influência de álcool”. No entanto, admite o magistrado que a penalidade pela infração de trânsito em exame poderá ser aplicada quando “os motoristas forem flagrados em aparente estado de embriaguez, exteriorizado, por exemplo, a partir de andar cambaleante ou direção em zigue-zague”. Concordamos plenamente com este entendimento jurisprudencial, apenas esclarecendo que a direção em ziguezague é apenas um dos muitos indicadores da presença de álcool no sangue do motorista. No entanto, cremos que o Habeas Corpus não é instrumento adequado para enfrentar essa questão, que não compromete propriamente o direito individual de ir e vir do cidadão.

            Tanto é que, em outro pedido a liminar foi negada por entender o relator que o “habeas corpus não é o instrumento adequado para tal finalidade, uma vez que as penalidades previstas para quem se nega ao teste de alcoolemia não incluem nenhuma ameaça ou violência concreta ao direito de locomoção física dos motoristas – mas tão somente ao uso do automóvel”. Com inteira razão, ressaltou o desembargador Vanderlei Romer que “seria extremamente constrangedor que alguém cometesse um homicídio em acidente de circulação, com o salvo conduto da Justiça debaixo do braço”.[14]

            Além disso, em diversas comarcas deste país, liminares estão sendo concedidas liminares em Habeas Corpus cujo fundamento jurídico, a nosso ver, é bastante discutível.  Isto demonstra que a questão, além de juridicamente polêmica é também generalizada. Por isso, é preciso que os tribunais superiores sejam chamados a exercer sua decisiva prestação jurisdicional uniformizadora.

 

 

 

            No caso de recusa do motorista submeter-se a teste ou exame de alcoolemia, conforme veremos abaixo, caberia ao agente de trânsito proceder à devida autuação, desde que tenha constatado o uso de álcool pelo condutor.

 

         3. Alteração Referente às Penalidades Administrativas

            O elenco de sanções administrativas cominadas ao condutor sob influência de álcool foi mantido com o mesmo conteúdo repressivo, aprovado pela Lei 11.275/06. O texto do preceito secundário, portanto, continua com a mesma redação:

            “Art. 165....................

            Penalidade - multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses;

            Medida Administrativa - retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação”.

            A infração continua classificada como “gravíssima”, com o valor da multa sendo multiplicado por cinco vezes. Além disso, a sanção pecuniária continua acompanhada da penalidade administrativa de suspensão do direito de dirigir e complementada pelas medidas de retenção do veículo e recolhimento do documento de habilitação.

            Assim, houve apenas uma alteração para ajustar a penalidade de suspensão do direito de dirigir ao princípio constitucional da temporalidade, que também se aplica às sanções de natureza administrativa. Agora, a norma é expressa em fixar o prazo máximo de doze meses de suspensão do direito de conduzir a que ficará sujeito o motorista infrator da lei de trânsito.

            Como pode ser observado, esse conjunto de penalidades administrativas representa uma resposta punitiva bastante severa. Principalmente, se considerarmos a natureza administrativa e não criminal e a aplicação de forma cumulativa destas sanções. Essa forma de resposta punitiva de incidência múltipla se revela ainda mais severa se considerarmos que pode ser aplicada ao condutor que apresente mínima concentração de álcool no sangue. Tudo isto, na esfera da atividade administrativa do poder estatal.

            Quando verificamos que, na esfera da justiça criminal, após demorado processo, o motorista verdadeiramente embriagado pode ser condenado e ter sua pena convertida em restritiva de direitos, com a aplicação de uma pena de prestação pecuniária no valor de uma cesta básica, não podemos deixar de ressaltar o paradoxo que estamos vivenciando em nosso país: enquanto os juízes condenam infratores ao pagamento de penas pecuniárias de valor irrisório, um simples guarda de trânsito ou mesmo um abstrato aparelho eletrônico pode aplicar multas relativamente elevadas, além de outras medidas repressivas de natureza administrativa.

 

            4. Margens de Tolerância para Casos Especiais

         Reconhecendo que algumas substâncias medicamentosas ou com outra destinação utilizam o álcool em sua composição, a lei delega ao Poder Executivo a competência para disciplinar “as margens de tolerância para casos específicos”.[15] A norma não esclarece o que seja um caso específico, mas é sabido que a ingestão de certos medicamentos podem acusar a presença de álcool no sangue. Por isso, o Contran deve aprovar e publicar resolução disciplinando esses eventuais casos de tolerância em relação ao motorista que se enquadre nessas hipóteses,[16]

            De qualquer modo, cabe ressaltar que, ao tolerar a presença de certa concentração de álcool no sangue desse tipo de “motorista especial” e admitir que o mesmo pode dirigir sem cometer qualquer infração de trânsito, a lei está implicitamente admitindo que é tolerável a existência de pequena e determinada taxa de alcoolemia, sem que isto represente, necessariamente, um risco à segurança no trânsito. A práxis policial tem rejeitado a idéia de tolerância zero e tem admitido que, até 0,2 decigramas de álcool por litro de sangue, não há infração administrativa a ser punida. Esta parece ser a orientação a ser adotada pelo CONTRAN. Mas, para aferir tão pequena quantidade de álcool é preciso que o motorista se submeta ao teste do bafômetro ou a outro exame capaz de indicar com precisão a taxa de alcoolemia.[17]     

 

            5. Procedimento para Apurar a Presença de Álcool no Sangue do Motorista

            Os casos em que a autoridade deve ou pode tomar a iniciativa de fiscalização e os meios ou métodos de prova para caraterização da infração administrativa em estudo, ou seja, do estado de alcoolemia do condutor, estão prescritos no art. 277 e seus parágrafos, do CTB, agora com a nova redação dada pela Lei 11.705/2008:

            “Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado. (Redação dada pela Lei nº 11.275, de 2006)

            § 1o Medida correspondente aplica-se no caso de suspeita de uso de substância entorpecente, tóxica ou de efeitos análogos. (Renumerado do parágrafo único pela Lei nº 11.275, de 2006)

            § 2o  A infração prevista no art. 165 deste Código poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor. 

            § 3o  Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo. (NR) 

            Como podemos verificar, o caput do artigo não sofreu qualquer alteração em seu texto. A inovação ficou por conta do contido nos §§ 2º e 3º deste artigo do CTB.[18] A seguir, faremos uma análise destes dispositivos, cuja aplicação vem causando muita discussão e divergência doutrinária.

 

            5.1 Abordagem pelo Agente de Trânsito para Constatar o Uso de Álcool pelo Condutor de Veículo Automotor

            De acordo com o caput do artigo, cujo texto não foi objeto de alteração pela Lei 11.705/2008,[19]  em duas situações o agente de trânsito tomará a iniciativa de submeter o motorista a um dos exames ou testes capazes de indicar a taxa de álcool no sangue. A primeira hipótese refere-se ao motorista envolvido em acidente de trânsito. Aqui, a realização do teste ou exame de alcoolemia é justificado pelo interesse público e, também, das partes envolvidas, de se produzir um elemento probatório seguro do estado de sobriedade etílica ou de embriaguez de cada um dos motoristas, a fim de se instruir eventual processo judicial criminal ou cível. Afinal, é fato notório que grande parte dos acidentes de trânsito é causada por motoristas alcoolizados.

            A segunda hipótese é a do motorista abordado numa ação fiscalizatória de trânsito. São as blitzes realizadas pelos agentes de trânsito para conferir se o veículo e respetivo condutor trafegam em conformidade com as normas prescritas pelo CTB e seus regulamentos promulgados pelos órgãos deliberativos competentes. Aqui, a sujeição do motorista ao teste ou exame de alcoolemia tem caráter preventivo e visa impedir que motoristas embriagados permaneçam ao volante de um veículo e coloquem em risco a segurança dos demais usuários do trânsito.

            Embora a lei dê a entender que o exame de alcoolemia seja obrigatório nas duas hipóteses assinaladas, cremos que, no caso de abordagem em blitze de trânsito, o procedimento só deverá ser adotado em caso de evidência objetiva de ter o motorista ingerido bebida alcoólica ou, como diz a lei, de estar conduzindo “sob influência do álcool”. A autoridade de trânsito deverá atuar com extremo bom senso e, somente em caso de fundada suspeita, submeter o motorista ao exame ou teste de alcoolemia. 

            Já no caso de acidente de trânsito, por interessar ao poder público e às partes envolvidas para eventual processo judicial, o teste ou exame de alcoolemia deve ser obrigatório.

 

            5.2 Tipos de Exames e Testes de Alcoolemia Previstos em Lei

            Em seu caput, a norma menciona os testes de alcoolemia, os exames clínicos e periciais, que podem ser realizados a fim de se apurar o grau de intoxicação causado pela ingestão de bebida alcoólica. Não há definição legal do que seja exame clínico, mas só pode ser aquele realizado por médico, com base nos mais diversos indicadores do estado de embriaguez do motorista. Já a perícia, de ser realizada em laboratório especializado, mediante procedimento técnicocientífico, para demonstrar a taxa de álcool no sangue do motorista.

            A prova da embriaguez do motorista ao volante pode ser também demonstrada mediante teste por meio de aparelho de ar alveolar, denominado de etilômetro e mais conhecido por bafômetro. Este procedimento é previsto, de forma expressa, pelo art. 277, do CTB, que se refere a ”outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN”, permitam certificar a taxa sangue. Cada vez mais sofisticado, mais exato e funcional, o bafômetro vem sendo utilizado com bastante freqüência, apesar de boa parte dos motoristas recusar-se a fazer uso deste meio de prova.

           

            5.3 Constatação pelo Agente de Trânsito do Uso de Alcool e Recusa do Motorista em se Submeter ao Teste ou Exame de Alcoolemia

            Com a alteração trazida pela Lei 11.705/08, o § 2º, do art. 277, do CTB, prevê que a infração administrativa de embriaguez ao volante (art. 165, do CTB),

            “poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor”. 

            A nosso ver, a norma contida no § 2º, deve ser interpretada de forma sistemática com o disposto no § 3º, do artigo aqui estudado. Este último dispositivo dispõe que serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no caput do artigo, “ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos indicados” no caput do artigo. Ou seja, somente se houver recusa à prova do bafômetro ou de qualquer outro exame legalmente previsto, é que o agente de trânsito poderá autuar o motorista por estar dirigindo sob a influência de álcool. 

Verificada a recusa, cabe ao agente de trânsito relatar que o motorista estava conduzindo sob a influência de álcool ou de qualquer outra droga e descrever, com detalhes, os sinais objetivos e indicadores do uso de bebida alcoólica antes de assumir o volante do veículo. No caso de infração constatada mediante relatório do agente de trânsito, é preciso um grau de embriaguez com sinais evidentes do estado de etilia apresentado pelo motorista, para que possa ser objetivamente observado e assim relatado pelo agente de trânsito. Para tanto deverá este observar os notórios sinais de embriaguez apresentados pelo condutor como: a excitação, a fúria, o torpor, o caminhar desaprumado, a fala truncada, desconexada ou exaltada. A estes indicadores diretamente relacionados ao (ou conseqüentes do) uso de bebida alcoólica, poderão ser acrescidos outros como o fato de ser o condutor viciado ou habituado a ingerir bebida alcoólica, ter freqüentado evento festivo, bar ou local de venda de bebida alcoólica, pouco antes de ser abordado na direção de um veículo automotor.

Desta forma, quando houver suspeita de que o condutor tenha ingerido bebida alcoólica ou, no dizer da lei, esteja dirigindo “sob influência do álcool”, a primeira iniciativa da autoridade de trânsito é a de submetê-lo ao teste de alcoolemia por ser procedimento de maior funcionalidade e precisão científica e menos invasivo à privacidade e à dignidade da pessoa humana, que se encontra na figura de cada condutor devidamente habilitado segundo as leis estabelecidas pelo Estado. Cremos que o teste do bafômetro é o que atende melhor a estes requisitos. Somente no caso de inexistência do bafômetro ou de recusa ao uso deste aparelho é que o condutor deverá ser submetido a outro tipo de exame médico ou pericial.

Mas, é possível - e tem sido comum – a recusa do condutor com indício de uso de bebida alcoólica em submeter-se a qualquer exame ou teste, aí incluído o teste do bafômetro. Neste caso, não haverá outra alternativa senão a de autuação do motorista com base na observação feita pelo agente de trânsito acerca dos sinais evidentes de uso de bebida alcoólica. Cremos que, para fins de configurar a infração administrativa de trânsito aqui estudada, este é um procedimento juridicamente válido.[20]

 

            5.4 Legitimidade da Norma que Atribui Competência ao Agente de Trânsito para Autuar Motorista que se Recusa ao Teste ou Exame de Alcoolemia

            A nosso ver, diante da recusa do condutor em se submeter a qualquer outro exame ou teste previsto no caput do artigo 277, do CTB, a constatação pelo agente de trânsito dos sinais de embriaguez ou, ao menos, de ingestão de bebida alcoólica, é procedimento administrativo viável, satisfatório e legítimo.

Primeiramente, porque, existe a necessária previsão legal para a adoção deste procedimento administrativo. Portanto, formalmente, é preciso reconhecer a força normativa de uma lei aprovada pelo Congresso Nacional segundo a forma prescrita na Constituição Federal. Do ponto de vista substancial, é preciso reconhecer, também, que a norma em exame visa a um fim ética e politicamente legítimo: a segurança coletiva do trânsito, bem de indiscutível valor jurídico. Na prática, isto significa prevenir um considerável número de acidentes de trânsito e evitar as mortes e lesões corporais daí resultantes. É evidente que este procedimento administrativo só será admitido como último recurso probatório da ocorrência desta grave infração de trânsito, ou seja, na impossibilidade de realização de qualquer um dos exames técnicos ou científicos.

Portanto, trata-se de procedimento excepcional, que se torna legítimo diante da impossibilidade de poder o Estado, no cumprimento de sua função de garantir a segurança no trânsito – direito de todos e dever dos órgãos do Sistema Nacional de Trânsito, no dizer do § 2 º, do art. 1º, do próprio CTB - lançar mão dos outros procedimentos técnicocientíficos bem mais precisos para comprovar o índice de alcoolemia do condutor.

 Em segundo lugar, é preciso não esquecer que, se a prova testemunhal é considerada idônea para demonstrar a existência e a autoria de um crime qualquer, não haveria porque negar este mesmo grau de eficiência jurídica para demonstrar, por meio de um auto circunstanciado da autoridade de trânsito, uma simples, porém grave, infração administrativa de trânsito. A lei exige mais do que um simples testemunho, pois o § 2º em estudo determina que o agente de trânsito, mediante provas em direito admitidas, indique os notórios sinais de embriaguez apresentados pelo condutor. Cremos que, neste ponto, o art. 2º, § 1º, da Resolução 206/06, do CONTRAN, foi recepcionado e continua com sua vigência preservada pela Lei 11.705/08. Esse dispositivo resolucional determina que o agente de trânsito relate - “na ocorrência ou em termo específico” e de forma objetiva - os sinais do estado de embriaguez verificados. Para tanto, o agente deverá prestar uma série de “informações mínimas”, previstas no anexo da referida Resolução.

Quanto à efetiva capacidade, cremos que o policial, como qualquer pessoa leiga, tem plena condição de constatar e relatar por escrito o estado de embriaguez do motorista. A experiência nos demonstra que um sério exame da aparência, das atitudes e das reações apresentadas permite concluir que uma pessoa apresenta sinais de embriaguez ou está se comportando sob a influência de álcool, principalmente, nos casos de embriaguez intensa ou ostensiva. Além disso, em caso de dúvida, deve prevalecer a regra do in dúbio pro reo.

A nosso ver, a recusa voluntária do condutor, impedindo o poder público de submetê-lo a um desses exames de maior precisão jurídica, já estaria criando a presunção ou, ao menos, um forte indício, do estado de embriaguez. Se assim é, as informações do agente de trânsito apenas corroboram uma situação fática já sinalizada pela circunstância de o motorista se negar ao teste ou ao exame.

Na verdade, se ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo[21] – princípio que deve ser sempre respeitado[22] – parece-nos ser válido inverter o enunciado para indagar se não é válido, também, existir um dever éticojurídico de demonstrar o seu estado de inocência, quando a única possibilidade de fazê-lo depende de um ato de vontade livre do próprio cidadão sob suspeita da prática de um ato infracional. Neste caso, se a prova contra a suspeita de embriaguez ao volante encontra-se no sangue que corre nas suas veias ou no seu próprio hálito, cremos que o cidadão-motorista não deveria negar-se a contribuir para o esclarecimento da verdade e, em conseqüência, impedir que o poder público possa cumprir sua relevante função de garantir as condições mínimas de um trânsito seguro para todos.

É evidente que não é jurídica nem eticamente legítimo obrigar o indivíduo a fazer prova contra si mesmo. Este é um direito individual que não pode ser violado pela lei ordinária em hipótese nenhuma. Quanto a isto, não pode haver qualquer discussão. Porém, parece-nos legítimo que o Direito pode, sim, prescrever que, diante de uma imputação administrativa baseada em sinais evidentes de uso de bebida alcoólica antes de dirigir, o cidadão tem o dever de provar sua inocência. Verificadas e relatadas as evidências de que o motorista estava dirigindo sob a influência do álcool, cabe ao mesmo produzir a contra-prova, por meio de um dos exames ou testes previstos no referido § 2º, do art. 277, do CTB ou, ainda, por qualquer outra prova admitida em Direito. Se assim decidir não fazer, parece-nos legítima a competência do agente de trânsito para proceder a devida autuação pela infração administrativa de trânsito sob exame.

Quando manifestada de forma livre e voluntária e sem justificativa razoável, cremos que essa recusa em contribuir para provar a sua própria inocência – no caso, o seu estado de sobriedade etílica - deve ser vista, senão para criar uma presunção de responsabilidade, no mínimo, como um forte indício do fato de que o motorista estava dirigindo sob a influência de álcool. Este forte indício transforma-se numa evidência jurídica suficiente para configurar a infração administrativa em estudo, quando os sinais objetivos do uso de bebida alcoólica forem constatados e relatados, pelo agente de trânsito. Cabe lembrar que este tem competência jurídica e goza da indispensável fé pública para constatar e proceder à autuação de motoristas que dirigem sem o cinto de segurança, sem a devida atenção ou que avançam o sinal vermelho etc. Ora, isto demonstra que pode dispor, também, de competência para constatar os sinais objetivos da presença do álcool no comportamento do motorista ao volante.

Cremos que a posição aqui adotada não discrepa dos princípios fundamentais do devido processo legal, seja criminal ou administrativo, que é o caso em tela. É regra processual básica que, em face da imputação de cometimento de determinada infração penal ou administrativa, lastreada em prova devidamente produzida, cabe ao imputado fazer a contra-prova, isto é, demonstrar a sua inocência.

Assim sendo, o estado de embriaguez ou de condução sob a influência de álcool, como elemento constitutivo desta infração administrativa de trânsito, pode ser legitimamente demonstrado nos termos do § 2º, do art. 277, do CTB, por duas razões que nos parecem relevantes: o indício da presença de álcool, decorrente da recusa do motorista de se submeter ao exame pericial capaz de comprovar o seu estado de sobriedade alcoólica e o relato do agente de trânsito acerca dos sinais objetivos ou evidentes do estado de embriaguez..

Por outro lado, em termos de sua legitimidade externa, este procedimento administrativo tem seu fundamento políticojurídico na segurança coletiva do trânsito que, conforme assinalamos acima, é direito de todo o cidadão e dever dos órgãos públicos de controle do trânsito.

 

6. Conclusões

No Brasil e, a cada ano, ocorrem mais de 35 mil mortes no trânsito.  Esta criminosa imprudência é censurável e justifica o controle administrativo e penal do poder estatal. Mas, mas não é menos lamentável a ausência de uma Política de Trânsito adequada, estável, bem definida e cumprida com o rigor que o problema exige.

A Lei 11.705/2008 alterou, de forma apenas pontual, dispositivos do CTB que tratam da infração de conduzir veículo automotor “sob a influência do álcool”.

O caput do art. 165, do CTB foi objeto de modificação redacional para adequá-lo à linguagem médicojurídica referente às substâncias naturais ou químicas capazes de causar dependência. Agora, a norma refere-se à “qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”.

            O conjunto de penalidades administrativas cominadas no preceito secundário do art. 165, do CTB, representa uma resposta punitiva bastante severa. Principalmente, se considerarmos a natureza de Direito Administrativo e a aplicação de forma cumulativa destas sanções.

            O art. 276 foi modificado para adotar uma política de “alcoolemia zero”, em termos de uso de bebida alcoólica por condutor de veículo automotor. Esta foi a alteração mais significativa. A lei não exige que o motorista seja portador de embriaguez completa ou plena e a configuração desta infração de trânsito ocorre quando o condutor apresentar qualquer taxa de álcool no sangue. Basta que o mesmo tenha ingerido e se encontre sob influência de qualquer tipo de bebida alcoólica.

            A intenção ou a mens legis é a de punir administrativamente o condutor que apresente qualquer concentração de alcoolemia (tolerância zero), mas a redação do caput do art. 165, não sinaliza corretamente neste sentido semântico e nem jurídico.

Significativa foi, também, a alteração introduzida no texto do art. 277, que prescreve a competência do agente de trânsito para aplicar as penalidades previstas no art. 165, do CTB.

            A lei prevê duas situações para o agente de trânsito tomar a iniciativa de submeter o motorista a um dos exames ou testes capazes de indicar a taxa de álcool no sangue: a primeira refere-se ao condutor envolvido em acidente de trânsito e a segunda à do motorista abordado numa ação fiscalizatória de trânsito.

            A lei dá a entender que o exame de alcoolemia é obrigatório nas duas hipóteses. Mas, no caso blitze de trânsito, o procedimento só deverá ser adotado quando houver evidência ou justificada suspeita de ter o motorista ingerido bebida alcoólica ou, como diz a lei, de estar conduzindo “sob influência do álcool”.

Quando houver justificada suspeita de que o condutor tenha ingerido bebida alcoólica, a primeira iniciativa do agente de trânsito é a de submetê-lo ao teste de alcoolemia pelo bafômetro, aparelho de maior funcionalidade e menos invasivo.  

Diante da recusa do condutor em se submeter a qualquer outro exame ou teste previsto no caput do artigo 277, do CTB, a constatação pelo agente de trânsito dos sinais de embriaguez ou, ao menos, de ingestão de bebida alcoólica, é procedimento administrativo juridicamente satisfatório, válido e legítimo , por duas razões relevantes: o indício da presença de álcool, decorrente da recusa do motorista em se submeter ao exame pericial capaz de comprovar o seu estado de sobriedade alcoólica e o relato do agente de trânsito acerca dos sinais objetivos ou evidentes do estado de embriaguez.

Em termos de sua legitimidade externa, este procedimento administrativo tem seu fundamento políticojurídico na segurança coletiva do trânsito que é direito de todo o cidadão e dever dos órgãos públicos de controle do trânsito.

            Finalmente, do ponto de vista de uma adequada e razoável Política Jurídica de controle do trânsito, ficou evidenciado que o Estado somente deveria intervir para proibir e sancionar o motorista que apresente determinado índice de concentração alcoólica no sangue e que poderia ser fixado em nível igual ou superior a seis decigramas de álcool por litro de sangue (ou 0,3 mg/l de álcool no ar expelido dos pulmões).

 

 

         7. Bibliografia

BRUNO, Aníbal. Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1959, v. 1, t. 2.

 

DOTTI, Curso de Direito Penal. Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

 

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 1995.

GOMES, Antônio Magalhães. O Direito à Prova no Processo Penal. Tese de Livre Docência. Faculdade Direito da USP, 1995.

JESUS, Damásio. Embriaguez ao Volante: Notas à Lei Nº 11.705/08. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal. Ano IV, nº 24, julho/2008.

LEAL, João José. Direito Penal Geral. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2004.

MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1965, v. 2.

MIRABETE; Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal. Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2004, p. 221

RIZZARDO, Arnaldo. Comentários ao Código de Trânsito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.

 


 

[1] Estes são números referentes ao ano de 2005 e constam da pesquisa sobre mortalidade por acidentes de transporte terrestre, divulgada em 25.04.2007, na Primeira Semana Mundial das Nações Unidas de Segurança no Trânsito promovida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) ,http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2007/04/25/materia.2007-04-25.4628403790/view. Acesso em 21.07.2008.

[2] Quanto ao número dos mortos e feridos do violento trânsito brasileiro, é preciso reconhecer que as estatísticas são divergentes. Nos meios de comunicação social, é comum a informação de que o número de morto é superior a 35 mil. Veja-se, por exemplo, o editorial do jornal a Folha de S. Paulo: “A embriaguez ao volante responde por parte significativa dos 35 mil óbitos anuais provocados por acidentes de trânsito no país”.  Entretanto, o Anuário Estatístico do Denatran – RENAEST informa os seguintes números referentes ao ano de 2006: 19.752 vítimas fatais e 404.385 vítimas não fatais. De qualquer modo, o número e elevado e assustador e explica o interesse e a freqüência com que a mídia trata deste grave problema.

[3]Não é apenas a tragédia humana dos mortos e feridos nas estradas brasileiras. Os prejuízos econômicos são também consideráveis. Segundo dados divulgados na acima referida Semana Mundial das Nações Unidas de Segurança no Trânsito promovida pela Organização Mundial de Saúde (OMS), realizada no período de 23 a 27 de abril de 2007, “os acidentes de trânsito causam prejuízos da ordem de R$ 24,6 bilhões” anuais à economia de nosso país.

[4] Vejam-se apenas algumas manchetes das duas primeiras semanas que se seguiram à publicação da Lei 11.705/08, de jornais de duas cidades e Estados diferentes. Tais manchetes noticiosas nos dão uma idéia da importância ou da forma sensacionalista com que a mídia  tratou da nova lei, na parte que disciplina o uso de bebida alcoólica por motoristas ao volante: Jornal Folha de S. Paulo: “PM vai colocar ‘espiões’ em bares, diz major” (Cotidiano, 26.06.2008, C1); “Lei Seca”, Editorial da edição de 05.07.2008,  A2; “Lei seca já reduz acidentes, diz polícia (Cotidiano, 05.07.2008, C1); “86% dos moradores de SP e do Rio aprovam a lei seca” (06.07.2008, Cotidiano C3). Ver, ainda, nesse mesmo jornal o artigo do filósofo José Arthur Giannotti: A lei seca e a secura do Estado”, Caderno Mais, p. 3). O autor desviou o foco de suas preocupações filosóficas para, também, tecer interessantes comentários a respeito desta polêmica lei. E é severo em sua critíca ao critério da tolerância zero adotado pela nova lei:: “No Brasil, esse exagero simplesmente repete o espetáculo de violência de um Estado fraco, que encena uma força desproporcional a seus recursos simplesmente para atemorizar. Isso equivale a legislar para que a lei não pegue, obviamente depois de saciar a boa consciência dos bem pensantes”. O jornal A Notícia, de Joinville, SC: não deixa de ser menos apelativo: “Zero de álcool na ponta da língua e ao volante” (21.006.2006, p. 12, e  “Nove presos em SC por beber antes de dirigir” (07.07.2008, p. 16. Cabe ressaltar que, passados dois meses de sua publicação, a lei em estudo continuou repercutindo nas manchetes dos meios de comunicação social, principalmente, por causa de sua opção por uma política de “tolerância zero”, em relação ao motorista que tenha feito uso de bebida alcoólica. A manchete estampada na primeira página do jornal Folha de S. Paulo, de sua edição de 26.07.2008, “Lei Seca poupa a hospitais de SP R$ 4,5 mi em 1 mês”, nos dá uma idéia do interesse e importância com que a mídia ainda tratava o assunto um mês após a edição da Lei 11.705/08.

[5] Para um estudo desta infração de trânsito, ainda na vigência do texto original do art. 165, do CTB, ver: RIZZARDO, Arnaldo. Comentários ao Código de Trânsito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 480-3.

[6] Por sua vez, o art. 66, da Lei Antidrogas, é taxativo ao definir como “drogas as substâncias entorpecentes, psicotrópicas, precursoras e outras sob controle especial, da Portaria SVS/MS nº 344, de 12 de maior de 1998.”

[7] O estado de embriaguez pelo álcool ou substâncias entorpecentes ou psicotrópicas em geral pode ser considerado como um processo agudo de intoxicação, resultante da ação do álcool sobre o sistema nervoso, capaz de causar perturbação mental e de comprometer a capcidade  normal de entender e de querer de seu portador. LEAL, João José. Direito Penal Geral. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2004, p. 369. Cabe ressaltar que Aníbal Bruno entende que a embriaguez, como um estado de intoxicação grave, “deveria incluir-se na categoria de doença mental, do nosso Código”. Para o autor, esse estado de intoxicação é “capaz de levar as funções da mente a perturbações profundas, até a letargia, alterando desde logo o psiquismo superior e privando o sujeito da capacidade normal de entendimento e vontade”. Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1959, v. 1, t. 2, p. 147. Sobre o conceito médicolegal de embriaguez, ver ainda: MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1965, v. 2, p. 181; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal. Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 203; MIRABETE; Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal. Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2004, p. 221; DOTTI, Curso de Direito Penal. Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 423.

[8] Cabe lembrar que o texto original do art. 165, do CTB, exigia a constatação de álcool, “em nível superior a seis decigramas por litro de sangue”. Tal exigência foi derrogada pela Lei 11.275/06, que deu nova redação ao artigo em referência. No entanto, o art. 276 havia mantido este patamar mínimo de seis decigramas de álcool, até ser derrogado pela Lei 11.705/08.

 

[9] Com a alteração inserida pela Lei 11.705/08, o texto do art. 276 tem agora a seguinte redação: “Qualquer concentração de álcool por  litro de sangue sujeita o condutor às penalidades previstas no art. 165, deste Código” (Código de Trânsito Brasileiro).

[10] JESUS, Damásio. Embriaguez ao Volante: Notas à Lei Nº 11.705/08. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal. Ano IV, nº 24, julho/2008, p. 80.

[11] Idem, p. 81. No artigo em referência, Damásio de Jesus entende que a expressão dirigir veículo automotor, em via pública, “sob a influência de álcool ou qualquer outra substância psicoativa”significa, necessariamente, que o condutor esteja “sofrendo seus efeitos, de forma anormal, fazendo ziguezages, ‘costurando o trânsito’, realizando ultrapassagem proibida, ‘colado’ ao veículo da frente, passando com sinal vermelho, na contramão, com excesso de velocidade, etc.”. Ibidem. Concordamos que a expressão “sob a influência do álcool” significa que o condutor deve apresentar taxa de alcoolemia suficiente para comprometer sua capacidade normal de dirigir um veículo automotor, mas não necessariamente que esteja conduzindo em ziguezagues, fazendo ultrapassagens indevidas ou tenha passado com o sinal vermelho, pois estas constituem outras infrações de trânsito, previstas no CTB, de forma autônoma.  

[12] Este foi o critério adotado pela Lei Antidrogas ao sancionar o usuário de drogas por conduta semelhante: “Conduzir embarcação ou aeronave após o consumo de drogas, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem”... É verdade que se trata de dispositivo de natureza criminal, mas que se encontra assentado na mesma política de “tolerância zero”.

[13] HC 2008.041165-4. Em outra liminar, o desembargador substituto Paulo Henrique Moritz Martins da Silva concedeu a ordem para que a impetrante não fosse tolhida da liberdade de ir, de vir, de ficar, de permanecer, por recusar-se ao teste de alcoolemia em diligência policial. E proibiu a aplicação das penalidades previstas na lei, pela simples recusa ao teste do bafômetro. O magistrado, contudo, tem a mesma posição do desembargador Medeiros: “observada a ressalva da direção anormal e perigosa, que coloque em risco a segurança viária” (Habeas Corpus 2008.040712-9).

[14] HC 2008043055-1. No mesmo sentido: HCs nº 2008.040688-0 e 2008.041150-6).

 

[15] É o que dispõe a nova redação do parágrafo único do art. 276, do CTB: “Órgão do Poder Executivo federal disciplinará as margens de tolerância para casos específicos”.

[16] Até a publicação deste artigo, o CONTRAN ainda não havia aprovado Resolução para “disciplinar as margens de tolerância”. Notícias divulgadas na imprensa indicam que há uma tendência para ser fixada a taxa de tolerância de 0,2 decigramas de álcool por litro de sangue. Assim, a infração só estaria configurada no caso de motorista que apresente taxa igual ou superior de 0,3 decigramas de álcool por litro de sangue.

[17] Isto significa que s expressão “Lei Seca” ou “Tolerância Zero” não passa de mais uma falácia.

[18] Para um estudo deste dispositivo do CTB, em sua versão original, ver: RIZZARDO, Arnaldo. Comentários ao Código de Trânsito Brasileiro, ob. cit., p. 698-9.

[19] O texto original do caput  do art. 277, do CTB, foi modificado pela Lei 11.275/06.

[20] Neste sentido: HC 2008.041165-4. No despacho de concessão da liminar requerida, o relator admite, no entanto, a validade de aplicação “das medidas administrativas – independente da negativa do motorista em se submeter ao bafômetro – quando a pessoa demonstrar estar claramente sob a influência de álcool”.

[21] O privilégio contra a auto-incriminação – que é plenamente invocável perante as Comissões Parlamentares de Inquérito – traduz direito público subjetivo assegurado a qualquer pessoa, que, na condição de testemunha, de indiciado ou de réu, deva prestar depoimento perante órgãos do Poder Legislativo, do Poder Executivo ou do Poder Judiciário (STF, HC Nº 79.812-SP, rel. Celso de Mello, DJU, 16.12.2001, p. 38).

[22] Ver sobre este princípio constitucional: GOMES, Antônio Magalhães. O Direito à Prova no Processo Penal. Tese de Livre Docência. Faculdade Direito da USP, 1995, p. 113 e segs.