O Interminável Passeio de Fernandinho Beira-Mar

 

João José Leal*

 

A remoção de  Fernandinho Beira-Mar para Florianópolis agitou os meios políticos e jurídicos do Estado de Santa Catarina. A começar pelo governador Luiz Henrique da Silveira, que considerou a presença do traficante no presídio da Polícia Federal uma ofensa ao povo catarinense. Mesmo que trancafiado a sete chaves.

Na Assembléia Legislativa, a reação não foi diferente. Deputados de todos os partidos condenaram a transferência do preso para terras catarinenses, com o argumento (até certo ponto preconceituoso, em termos de convivência nacional decorrente do Princípio Republicano) de que Santa Catarina é um Estado onde o povo é ordeiro, trabalhador, respeitador da lei e da paz social. Por isso, não é merecedor de receber um hóspede tão indesejável e perigoso.

A OAB/S anunciou que ingressaria com ação judicial para mandar o traficante de volta. A Entidade representativa dos advogados entende que, de acordo com a Lei de Execução Penal, o presídio federal de Florianópolis destina-se a presos provisórios e o traficante já se encontra condenado pela justiça criminal. Deveria, portanto, ser internado em Penitenciária, que é o estabelecimento prisional legalmente adequado para a execução de pena dos infratores já condenados. É o que dispõe o art. 87, caput, da  Lei Nº 7.210/84 – LEP - Lei de Execução Penal – LEP. Acontece que Beira-Mar, embora condenado, ainda responde a processos criminais.

O Poder Judiciário catarinense também manifestou-se contrário à referida remoção, por entendê-la indevida e ofensiva à autoridade judiciária federal da execução da pena, com jurisdição na capital catarinense.

O fato acabou tão superestimado que as chefias dos três poderes catarinenses, com a presença do Ministério Público, do Presidente da OAB e de outras entidades representativas, aprovaram a redação de uma nota de repúdio à permanência do referido condenado em qualquer presídio do Estado catarinense. A nota foi entregue ao ministro da  justiça Márcio Thomaz Bastos e pedia que o traficante fosse transferido de Florianópolis, para cumprir sua pena no Estado onde foi condenado, isto é, no Rio de Janeiro.

Por último e pressionado por todo esse aparato dos poderes estaduais, o Prefeito em exercício da Capital notificou o Superintendente da Polícia Federal, dando-lhe conta de decisão administrativa de interdição das celas prisionais existentes na sede daquela Delegacia. O ato interditório baseia-se no fato de que a sede da Delegacia está situada em local destinado a prédios para abrigar apenas repartições públicas e não presídios.

Na verdade, parece que o Prefeito em exercício reagiu de forma casuística e juridicamente pouco  convincente, diante de um fato que precisa ser encarado de forma mais séria, sem perder de vista os princípios republicanos e da segurança coletiva e as normas previstas na LEP. O mesmo vale para a reação das demais autoridades.

No caso do Prefeito, parece bastante discutível que a sede da Superintendência da Polícia Federal, com todos os seus equipamentos, recursos e dependências, recentemente construída segundo as normas do Plano Diretor e do Estatuto da Cidade, não possa ser classificada como “repartição pública”. Além disso, nas proximidades daquele prédio, encontra-se localizada, há mais de 60 anos, a Penitenciária Estadual de Florianópolis. Portanto, a sede da Delegacia Federal parece estar construída em local legalmente apropriado.

Ao que tudo indica, o Prefeito adotou a via da interdição para dar uma satisfação à opinião pública. Os florianopolitanos, diante da reação das autoridades públicas, sentiram-se à vontade e devidamente motivados para também manifestarem-se contrariados com a presença do traficante na capital catarinense.  

É estranho, mas é verdadeiro: Fernandinho Beira-Mar, que deveria ser – apenas e tão somente - um dos milhares casos de polícia deste país, tornou-se um Caso de Estado. As autoridades constituídas continuam dispensando precioso tempo e atenção para decidir onde o famoso bandido deve ser encarcerado.

Criou-se, realmente, uma situação inusitada. Os catarinenses não querem o traficante em seu Estado. Aliás, ninguém o quer. Em torno de sua imagem de traficante e de bandido violento, criou-se uma “áurea” de tamanha periculosidade que a proximidade de sua presença - mesmo que trancafiado em cela de segurança máxima – tem gerado uma intensa e incontrolável sensação de insegurança e de pânico.

Todos reagem para vê-lo o mais distante possível. Com isto, o traficante continua viajando por este Brasil afora, causando manifestações de protesto e notas de repúdio, até que seja removido para outro local, onde tudo recomeça. Enfim, todos consideram-se no direito de se imaginar longe e livre do midiático bandido brasileiro. Porém, para a segurança de todos nós, o Estado tem o dever de mantê-lo preso em algum lugar deste país.

Fernandinho é a versão brasileira de Pablo Escobar. Ambos foram chefes do narcotráfico. Pelos favelados do Rio ou pelos pobres de Medelín, eram tidos como benfeitores da população proletária e excluída de uma sociedade marcada pelo desajuste socioeconômico. Mas foram capazes (e Fernandinho, apesar do diminutivo, ainda o é!) de cometer atos de profunda perversidade, trucidando todos os que atravessaram nos seus caminhos e na suas respetivas rotas de tráfico. Escobar foi morto em confronto com a polícia colombiana.

Quanto a Beira-Mar, enquanto continuar na condição de condenado da justiça criminal, cabe à Administração Penitenciária, mantê-lo encarcerado, segregado da vida social, numa prisão de segurança máxima, para que tenhamos um pouco de segurança e de tranqüilidade. Seja num presídio de Florianópolis, do Rio de Janeiro ou de qualquer cidade brasileira, o importante é saber que o traficante está encarcerado com segurança, pagando por seus hediondos crimes.

Juridicamente, é possível o cumprimento de pena privativa de liberdade aplicada pela justiça de uma unidade federativa em estabelecimento penal de outro Estado-membro (art. 86, caput, da LEP). Esta alternativa legal não se destina a atender apenas ao interesse do condenado de permanecer – quando possível - perto de sua família ou do local onde tinha (ou tem) residência. Atende, também, ao interesse da Administração Penitenciária de buscar o estabelecimento mais adequado e recomendável para a hipótese de condenados de especial periculosidade ou capazes de  reiterados atos de rebeldia e de infração  às normas da disciplina prisional.

O § 1º deste mesmo artigo preceitua que a União Federal poderá construir estabelecimento penal em lugar distante da condenação para recolher os condenados, quando a medida se justifique no interesse da segurança pública e do próprio condenado. No caso de Beira-Mar, é lógico que há interesse da segurança coletiva em tê-lo distante dos presídios do Rio de Janeiro, pois durante o período em que ali esteve em regime fechado, cometeu uma série de infrações disciplinares graves, algumas tipificadas como crimes de violência os mais graves. Do interior do presídio, conseguia a façanha incrível de comandar ações de tráfico, por meio de seus asseclas,  nas favelas cariocas onde tem o controle da distribuição de drogas entorpecentes.

Portanto, o que pode impedir, legalmente, a permanência do traficante na carceragem da Polícia Federal de Florianópolis, é a natureza do estabelecimento prisional, destinado a alojar presos provisórios. Mas essa ilegalidade é cometida aos milhares em todo o Brasil, inclusive em Santa Catarina. Na mesma semana da polêmica em foco, foram transferidos 51 presos de Balneário Camboriú, cujo presídio encontra-se em (des)condições precaríssimas e onde a Lei de Execução passa ao largo.

No presídio do mais turístico e freqüentado balneário catarinense , estavam amontoados mais de 280, num espaço destinado a alojar apenas 70 presos. Condenados e presos provisórios – em número muito superior à capacidade física do prédio e de suas instalações - lá continuam amargando o preço de seus crimes, em completo descumprimento às normas da LEP. Não há qualquer condição de separar preso condenado dos provisórios. Segundo reconheceu o próprio diretor desse presídio, foi necessário ocupar área do pátio interno, destinado ao “passeio” e ao “sol” dos internos, para ali improvisar celas coletivas cobertas com lona plástica apenas para abrigar da chuva e amenizar o rigor das geladas noites de inverno.

O referido estabelecimento prisional é um autêntico caldeirão da maldade punitiva e da (des)condição humana. O mais grave é que não é diferente em outros presídios superlotados de Santa Catarina, nem do Brasil.

No caso de Florianópolis, Fernandinho encontra-se num presídio situado na charmosa avenida Beira-Mar, a mais chique e badalada avenida da capital catarinense. Portanto, pelo apelido que carrega consigo, o traficante deveria estar contente com a nova hospedagem. Mas já manifestou sua contrariedade. Seu advogado – um ex-ministro do STJ – comunicou que vai recorrer do ato de transferência.

É possível que Fernandinho Beira-Mar não fique muito tempo em terras catarinenses. Afinal de contas, ele não quer e seu advogado entende ilegal a transferência. Além disso, sem querer, ganhou a defesa de outros advogados de peso: toda a OAB/SC e as autoridades máximas de Santa Catarina (incluindo as da capital do Estado) também trabalham pela sua remoção.

É possível que, quando este artigo for publicado, o traficante já esteja longe de Florianópolis, para o regozijo e a tranqüilidade dos catarinenses. Mas, é provável, também, que uma outra comunidade esteja em pé de guerra com a Administração Penitenciária ou com a Polícia Federal por ter feito mais uma indesejável remoção do temível bandido carioca.

Na verdade, enquanto a União não construir penitenciárias de segurança máxima, conforme está programado no art. 86, § 1º, da Lei de Execução Penal e resolver, de forma legalmente adequada, situações prisionais como a que estamos analisando, o impasse evidentemente vai continuar.

E Fernandinho Beira-Mar continuará viajando por este Brasil afora, ocasionando notas de protesto e de repúdio contra a sua indesejável presença.

            *Professor do Curso de Pós-Graduação em Ciência Jurídica – CPCJ/UNIVALI. Ex-Procurador Geral de Justiça e Promotor de Justiça aposentado. Associado do IBCCrim e da AIDP.