O TERCEIRO SETOR NO CONTEXTO DA REFORMA DO ESTADO

 

   Por: Bianca Helena dos Santos e Mariana Brasil Nogueira

(Formadas em Direito pelas Faculdades Jorge Amado - Salvador/Bahia).

 

A Constituição Federal de 1988 foi um marco, não só para a ordem jurídica, como também para toda a sociedade. Denominada “constituição cidadã”, esse diploma legal inovou ao elencar um capítulo denominado “dos direitos e garantias fundamentais”. Contudo, apesar da previsão expressa quanto aos direitos fundamentais, o Estado, em seu quadro atual, não consegue suprir as necessidades que afloram no corpo social.

 

Sobram críticas quanto à Carta Magna e sua distância com a realidade, visto que, apesar de conter todas as garantias na letra da lei, esta não consegue, por ausência de políticas públicas e orçamentárias, ser efetivamente aplicada. 

 

O Brasil, atualmente, além da crise política, sofre uma crise em todas as suas instituições. O serviço público está longe de ser prestado de forma satisfatória e eficiente. A burocracia apresenta-se como um grande entrave à prestação do serviço, inviabilizando, assim, seu efetivo cumprimento.

 

Em 1995, no governo de Fernando Henrique Cardoso, foi proposto o “plano diretor da reforma do aparelho estatal”, PDRAE. Essa proposta de reforma, tendo em vista a burocracia do serviço público, consistia numa tentativa de transformar a gestão pública.

 

As políticas defendidas nesse plano levariam à transferência de algumas das funções do Estado para a sociedade civil organizada. Ao Estado caberia apenas o exercício dos serviços públicos essenciais, fiscalização e incentivos fiscais, por isso, fala-se em Estado mínimo, com ideologias neoliberais.

 

Um dos argumentos utilizados para a aceitação da mencionada proposta era a crise em que o Estado encontrava-se, sendo a aplicação do plano propagada como uma solução viável para otimizar o serviço publico. Além disso, enquanto o Estado, com menos funções, a realizariam de maneira satisfatória, visto a diminuição das suas responsabilidades, a sociedade civil organizada, enquanto presta serviço para si mesma, também o fará de forma atenciosa.

 

Ao Ministério de Administração de Reforma do Estado, MARE, criado na citada proposta de reforma do governo de Fernando Henrique Cardoso, foi atribuído o papel de estimulador das reformas propostas, neste caso, deveria assessorar os ministérios, nas suas tentativas de reforma.

 

A referida reforma do Estado traz como conseqüência, portanto, a “redefinição do seu papel”. Nesse sentido, entende Élida Graziane Pinto:

 

Redefinir o papel do Estado seria, segundo a lógica governamental, fazer com que ele abandonasse a responsabilidade direta pelo "desenvolvimento econômico e social pela via da produção de bens e serviços para fortalecer-se na função de promotor e regulador desse desenvolvimento". Em termos mais claros, para o PDRAE, "reformar o Estado significa transferir para o setor privado as atividades que podem ser controladas pelo mercado".[1]

 

Tendo em vista da análise da crise do Estado, percebe-se que o conceito de sociedade civil organizada advém desta crise, surge exatamente da ausência do poder estatal no exercício das atividades que são de sua responsabilidade.

 

A incapacidade do Estado em suprir toda a demanda social e a necessidade da população tornaram imperativo o surgimento da sociedade civil organizada, em sua contribuição na cidadania participativa. Assumir determinadas funções, que seria de responsabilidade do Estado, não quer dizer que o papel estatal será diminuído ou anulado. Existe, portanto, uma cooperação mútua entre ambos.

 

Segundo Rubens Naves, o conceito de sociedade civil organizada surge:

 

Quando o poder central revela-se inacessível aos interesses da população, e a política deixa de ser o caminho para o exercício dos direitos, a tendência é surgirem novas formas de organização, que vão constituir o que se entende por ‘sociedade civil’. Neste sentido, integram o terceiro setor parte das entidades nas quais se organizam os membros da sociedade civil[2].

 

A sociedade civil organizada pode ser visualizada através do terceiro setor. As pessoas jurídicas que o compõe são: fundações, associações e sociedades. Visam, portanto, o exercício de funções benéficas à sociedade, tais como defesa dos direitos humanos, proteção ao meio ambiente, assistência à saúde, apoio a populações carentes, educação, cidadania, direitos da mulher, direitos indígenas, direitos do consumidor, direitos da criança, entre outros. Conforme Rubens Naves, o conceito de terceiro setor é:

 

Por hora, vamos nos ater a uma definição mais genérica: compreendem o terceiro setor todas as entidades que não fazem parte da máquina estatal, não visam lucro e não se afirmam com discurso ideológico, mas sim sobre questões específicas da organização social[3].

 

A importância do terceiro setor para a sociedade só veio a ser reconhecida recentemente. Em 1999, houve a primeira previsão legal quanto a este tema, que é a Lei nº. 9.790/99. Esse diploma legal, certamente, não teria sido criado sem a influência da sociedade solidária. A partir de 1999, portanto, as atividades em que as entidades que podem atuar, os requisitos para a qualificação de uma entidade sem fins lucrativos como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, o controle e a prestação de contas, a possibilidade de auditoria externa independente e a celebração de “termos de parceria” passaram a ser matéria reguladas pela legislação.

 

Os “termos de parceria” traduzem-se um vínculo de cooperação entre a entidade do terceiro setor e o poder público, para que haja a execução de atividades de interesse público. É através desse vínculo que o Estado pode estabelecer uma forma de controle sobre a organização, no que diz respeito aos recursos públicos que forem por ela recebidos.

 

Como é muito comum no Brasil, é equivocado associar terceiro setor apenas a sua função assistencialista. A prestação do serviço público, pela entidade, reflete o exercício da cidadania de cada um de seus membros, tendo em vista que, no atual momento de globalização, o Estado não consegue suportar toda a demanda social, ainda que não haja, juridicamente, uma definição precisa acerca do que é, efetivamente, o terceiro setor.

 

Percebe-se, portanto, que o terceiro setor, em nenhum momento, visa substituir a figura do Estado, ou mesmo cobrir brechas decorrentes da sua omissão, mas tão somente, agir em conjunto e prestar serviços essenciais à população. Portanto, o seu surgimento demonstra o amadurecimento da própria sociedade, que não se mostrou omissa diante dos problemas decorrentes da má administração da máquina estatal, ao contrário, uniu-se ao Estado, como forme de garantir os seus direitos e satisfazer suas necessidades.

 

O quadro atual apresenta-se favorável ao fortalecimento do terceiro setor, principalmente no que concerne às suas três principais funções: prestação de serviços, pressão política sobre o Estado e apoio ao mesmo. E este caminho, além de garantir uma maior credibilidade, influencia os membros da sociedade a participarem nesse processo.

 

Nesse sentido, entende José Eduardo Sabo que:

 

[...] a importância desse setor no âmbito da sociedade e da economia contemporâneas pela sua capacidade de mobilização de recursos humanos e materiais para o atendimento de importante demandas sociais que, frequentemente o Estado não tem condições de atender; pela sua capacidade de geração de empregos [...]; e pelo aspecto qualitativo, caracterizado pelo idealismo de suas atividades – enquanto participação democrática, exercício de cidadania e responsabilidade social[4].

 

 

REFERÊNCIAS:

 

 NAVES,Rubens. Novas possibilidades para o exercício da cidadania.

 

PAES, José Eduardo Sabo. Fundações em entidades de interesse social. 5ª ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2004.

 

 

PINTO, Élida Graziane. Plano diretor da reforma do aparelho do estado e organizações sociais. Uma discussão dos pressupostos do "modelo" de reforma do Estado Brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, a. 5, n. 51, out. 2001. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2168>. Acesso em: 18 nov. 2005.

 

 


 

[1] PINTO, Élida Graziane. Plano diretor da reforma do aparelho do estado e organizações sociais. Uma discussão dos pressupostos do "modelo" de reforma do Estado Brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, a. 5, n. 51, out. 2001. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2168>. Acesso em: 18 nov. 2005

[2] Rubens Naves, Novas possibilidades para o exercício da cidadania, p. 564.

[3] Rubens Naves, Novas possibilidades para o exercício da cidadania, p. 565.

[4] PAES, José Eduardo Sabo. Fundações em entidades d interesse social. 5ª ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2004, p. 99.

 

Artigo publicado no site PesquiseDireito.com em 14.12.2005