Patrimonialismo: A Quebra do Paradigma

 

Alan Carneiro de Matos –

Estudante do 10º Semestre de Direito das Faculdades Jorge Amado

 

Desde os primórdios, o homem possui grande apreço pelos bens materiais e o verbo “ter” acostumou-se a vir antes do “ser” no alfabeto da civilização, mesmo que contrariando todas as regras da gramática. A personalidade, de que são titulares os homens, visto definir-se como o conjunto de obrigações e deveres, sempre foi o foco do direito e das leis positivadas, por isso disputada com tanta veemência pelo âmago da evolução.

 

BONFIM[i], citando MARX, explana que o homem produz a sua existência com o seu trabalho e assim é aquilo que ele constrói, por isso tem o livre arbítrio para construir e modificar o mundo como melhor lhe parece. As escolhas nem sempre são as mais acertadas, pois o referido livre arbítrio possui duas faces, que corroboram e atuam em lados opostos e por isso o mundo viveu muitos séculos com a nítida informação da necessidade de conquistar o que a outro pertence, quando, na verdade, o enfoque deveria ser adverso.

 

Não obstante, existiam alguns atentos à responsabilidade do poder conferido ao homem. Estes promoveram a reação capaz de alforriar a humanidade de pretensões culturalmente voltadas à recusa da verdadeira responsabilidade para com o seu semelhante e para consigo mesmo, foi o que fez BONFIM[ii], citando LUKÁKS, explica chamando a atenção para que o homem:

 

Operando nas objetivações que se dão nas esferas estética e ética faz com que o individuo se liberte de sua mera particularidade, sem suas limitações singulares e tome consciência ativa de sua dimensão universal enquanto parte integrante do gênero humano.

 

Parece uma preocupação utópica, mas a consciência ativa da dimensão do homem pode promover segundo FREIRE[iii] uma mudança necessária para posicionar-se no mundo e nele inserir-se como ser humano. Assim, valoriza-se e entende-se como ser, sujeito de direito, mas principalmente por compreender o espaço das relações entre aqueles que se apropriam do ter como titular de obrigações com os seus semelhantes. A dignidade humana para ser concebida como valorização do ser humano em detrimento de outros valores mais materiais, precisa centrar-se no sujeito como ser no mundo e neste inserido.

 

Ao longo do processo histórico, se conviveu com uma batalha ora silenciosa, ora explosiva, travada no âmbito das lutas pela dignidade da pessoa, em que a preponderância dos direitos patrimonialista e individualista esta evidenciada.

 

O seu significado de patrimonialismo expresso no dicionário se encontra como “patrimônio” definido como[iv] um “(...) Complexo de bens, material ou não, direitos, ações, posse e tudo o mais que pertença a uma pessoa ou empresa e seja suscetível de apreciação econômica. (...)”. É evidente que o objeto principal do referido patrimonialismo seja o patrimônio, por isso a necessidade de sua definição e por isso também inevitável aclarar os limites – quando determinamos que isso ou aquilo seja passível de ser apropriado –, ou a falta deles, característica preponderante desta fase da nossa civilização.

 

FAORO[v] apresenta que a transição em que o Estado se submeteu quando passou a entender o seu súdito como cidadão e assim passa o referido estado de Senhor a Servidor, visto que a capacidade contratar, vender, dispor da propriedade passa para a liberdade pessoal, reduzindo-o a mero garante destes direitos. Surge assim uma nova ótica, como bem o diz, “ao tempo de Montesquieu [vi], e ao capitalismo político, adveio o capitalismo denominado moderno ou industrial.

 

Numa visão menos macroscópica poderá ser verificado o domínio exercido pela elite burguesa, que conceitua todo o poder econômico na sua restrita classe social, como assevera FAORO[vii], trazendo o pensamento de IRVING LOUIS HOROWITZ para explicar que:

 

No patrimonialismo, no momento de emergência das classes, procuram esta nacionalizar o poder, apropriá-lo, para que se dilua na elite. (...). A elite política do patrimonialismo é o estamento, estrato social com efetivo comando político, numa ordem de conteúdo aristocrático. (...). Se a linha divisória se traça com firmeza, em relação às elites, na sua concepção com o sistema político, nem sempre será possível evitar o campo lábil, ambíguo, equivoco das conjunções entre burocracia e controle popular, sobretudo nos paises em formação e nos subdesenvolvidos. Nos primeiros, a elite burocrática, a intelligentsia, que absorve as técnicas do capitalismo industrial, preocupada com a eficácia da modernização econômica e social, tenta se autonomizar, desdenhando dos políticos, para elas simples agitadores, ignorantes, incapazes e corruptos. Num país que recém ingressou nas nações independentes, o administrador egresso da universidade européia espanta-se que o político queira orientar o planejamento econômico, ele nunca freqüentou um curso de pós-graduação.

 

O patrimonialismo e movido pelo combustível capitalismo, cada vez mais realizavam a fronteira limítrofe da diferença aviltante entre a elite econômica e política e as camadas populares.  O ser humano não é considerado diante dos ditames da coisificação.

 

O Brasileiro, pontualmente, sufocado pelo jurismo nacional, via-se absolutamente surpreso pelo cuidado normativo de construir a realidade, com uma legislação elaborada com primoroso rigor decorativo, apresentando um bojo destoante da cultura e das necessidades populares. RAIMUNDO FAORO[viii], utilizando-se do que escreveu NESTOR DUARTE, transcrevendo sua sarcástica visão daquelas leis criadas para tornar as demais obrigatórias.

 

o nosso jurismo” – escreve Nestor Duarte – “como o amor a concepções doutrinárias, com que modelamos nossas constituições e procuramos seguir as formas políticas adotadas, é bem a demonstração do esforço para construir com a lei, antes dos fatos, uma ordem política e uma vida pública  que os costumes, as tradições e os antecedentes históricos não formaram, nem tiveram tempo de sedimentar e cristalizar(...)Um trabalho de construção ora desproporcionado, ora artificial, sempre com maior ou menor contraste sobre o terreno vazio.

 

Continua, ainda, RAIMUNDO FAORO[ix], comentando acerca do papel do legislativo na legitimação do patrimonialismo que usurpa todo o ensejo da população, para, positivamente, fulcrar o seu “novo” modo de vida, quando afirma que se

 

Edifica nas nuvens, sem contar com a reação dos fatos, para que da lei ou do plano saia do homem tal como o laboratório de Fausto, o qual, apesar de seu artificialismo, atende à modernização e ao desenvolvimento do país. A vida social será antecipada pelas reformas, legislativas, esteticamente sedutoras, assim como a atividade econômica será criado a partir do esquema, do papel para a realidade. Caminho, este, antagônico ao pragmatismo político, ao florescimento espontâneo da árvore. Política silogística chamou Joaquim Nabuco. ‘É uma pura arte de construção no vácuo. A base são teses e não fatos; o material, idéias, e não o homem; a simulação, o mundo e não o país; os habitantes, as gerações futuras e não as atuais. ’

 

O que se observa é o quanto as bases orientadoras do patrimonialismo estão centrada na atividade econômica, se desenvolvendo a ponto de politicamente impor leis que reconhecem a apropriação de bens, com uma pura constituição retórica distanciada dos dilemas da sociedade dividida em estamentos.

 

Comenta que, num processo modernizador e marginalizador na história brasileira, “a camada dirigente atua em nome próprio, servida dos instrumentos políticos derivados de sua posse do aparelhamento estatal [x]. E ainda serve-se de um padrão de domínio, sem que orientem a mudança, refreadas ou combatidas, quando o ameaçam, estimuladas, se o favorecem. Assim, assume e compatibiliza-se com o imobilizar das classes, dos partidos e das elites, para não serem atingidos pelos grupos de pressão.

 

Verifica-se que o patrimonialismo compõe a parte negra da historia da humanidade de forma tal que seleciona uma casta dominante, dos meios de produção e riqueza e segrega o restante, maquiando a realidade com melhor lhe parece. Esta concepção que promove a desigualdade social tem o seu maior exemplo na escravidão que assolou o país, rotulando os negros africanos de “peças”, sujeitos à aquisição a titulo de propriedade pelos grandes senhores de terras, absolutamente semelhante na forma física, doravante desiguais na pigmentação da pele e no metalismo.

 

O que mais nos intriga é que o patrimonialismo tem fulcro legal desde a chegada dos portugueses no Brasil com as cartas de doações para alguns senhores, que possuía um titulo de propriedade sobre o seu semelhante, o que lhes dava o DIREITO de dispor como quisesse de suas peças, na inobservância do estado de liberdade do ser humano, que já nascia sem possuí-lo.

 

A incumbência de mudar esse pensamento patrimonialista pertenceu ao cristianismo primitivo, como assevera NOBRE JÚNIOR[xi], mostrando que a mesma pretendia promover uma mudança na mentalidade, instituindo a fraternidade, propugnando a igualdade entre os seres humanos sem se afastar deste pensamento. O autor refere-se ao patrimonialismo como uma forma de escravidão quando destaca, citando AMÉRICO JACOBINA LACOMBE[xii], que:

 

Coube ao pensamento cristão, fundado na fraternidade, provocar a mudança de mentalidade em direção à igualdade dos seres humanos. Essa luta, que teve seu lugar ainda no final do Império Romano, com a proibição de crueldades aos escravos, imposta pelo Imperador Constantino, continuara com o ressurgimento da escravidão, provocado pelas navegações, de modo a merecer censura do Papa Paulo III, através da bula Sublimis Deus, de 1537, somente cessando com o triunfar dos movimentos abolicionistas do Século XIX e do alvorecer da centúria que acaba de findar-se.

 

Será que pode-se dizer que a partir deste processo de abolição começava o quebrado o paradigma do Patrimonialismo para se alcançar a dignidade da pessoa humana? Pode-se destacar que a Lei Fundamental de Bonn, de 23 de maio de 1949, foi pioneira quando no seu inciso primeiro preconiza: “A dignidade do homem é intangível. Os poderes públicos estão obrigados a respeitá-la e protegê-la”, com fulcro na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Este preceito ganharia maior relevância com o advento do Estado Social, visto que a dignidade da pessoa humana não seria obrigação do Estado, até porque a imunidade do cidadão frente ao mesmo traria mais efetividade, que a sua atitude pro ativa.

 

Com efeito, ainda ressalva JOSÉ AFONSO DA SILVA [xiii] que:

 

 (..) o pensamento cristão, como fonte remota, porque, na verdade, a interpretação do cristianismo que vigorava no século XVIII era favorável ao status quo vigente, uma vez que o clero, especialmente o alto clero apoiava a monarquia absoluta, e até a oferecia a ideologia que a sustentava com a tese da origem divina do poder; o pensamento cristão vigente, portanto, não favorecia para o surgimento de uma declaração dos direitos do homem; o cristianismo primitivo, sim, continha uma mensagem de libertação do homem, na sua afirmação de dignidade eminente da pessoa humana, porque o homem é uma criatura formada à imagem de Deus, e esta dignidade pertence a todos os homens sem distinção(...)

 

Como num efeito cascata, as Constituições Pátrias, começando com a Italiana (1947), que em seu art. 3º determinou que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei” e se estendendo pela Portuguesa e Espanhola. O culto à Dignidade da Pessoa Humana traçaria, a partir deste momento, um crescimento vertiginoso.

 

Na legislação pátria, existiu a distinção entre três fases constitucionais, conforme afirma PAULO BONAVIDES[xiv], onde na primeira houve a influência dos modelos francês e italiano, corroborando para a feitura da Constituição pátria de 1924. Posteriormente, a influência caberia aos Estados Unidos, convolando-se na Constituição de 1824 e na terceira fase seria a vez da Alemanha nortear a Constituição Brasileira de 1934, e foi aí que se apregoou o novo tema da Dignidade da Pessoa Humana. A Constituição Federal Brasileira de 1988, em seu artigo 1º, inciso III deixou claro como pilar norteador do seu Estado Democrático de Direito a DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.

 

Para enfrentar esta discussão, FACHIN[xv] aponta de forma peculiar diferença entre sujeito e objeto, na qual entendemos como latente para trazer para a compreensão sobre a dignidade humana, já que a sua discrepância não vai nos ajudar entender que na relação jurídica entre o homem e o objeto poderá contribuir para o primeiro fortalecer a sua condição humana.  Fachin[xvi] tem razão quando ressalta que:

 

O sujeito e o objeto ocupam espaço jurídico privilegiado na base das relações jurídicas. Ao primeiro se reserva um posto avançado no ordenamento jurídico, a partir da noção de pessoa. Ao segundo são dedicados princípios e regras que o regime jurídico dos bens. Ambos se articulam sob as vestes da relação jurídica. Ao patrimônio é deferido lugar de submissão às faculdades inerentes ao titular da referida esfera jurídica. Dos bens é o titular que se serve. Porém, um olhar mais detido pode revelar diversa nuança(...)

 

Não queremos sobrepujar totalmente a propriedade em detrimento da pessoa e sim colocá-la na relação inversa em que os bens e a propriedade devem servir ao homem. Para enfrentar o tema, LENIO STRECK[xvii] chama atenção de que a sociedade liberal-burguesa vem privilegiando as coisas (afinal, o Código civil estabeleceu com muita propriedade como se deve comprar coisa, vender coisa, emprestar coisa, doar coisas, trocar coisas, devolver coisas, registrar coisas, elaborar contrato para comprar e vender coisas, como se defender quando alguém invade “suas coisas”, etc, em detrimento da pessoa e fundamentalmente da coletividade.

 

Alan Carneiro de Matos – Estudante do 10º Semestre de Direito das Faculdades Jorge Amado

 

Notas:


 

[i] BOMFIM, Joelma Boaventura da Silva. Artigo: O Lugar do Ser Humano na Formação do Bacharel em Direito. Mimeo, p. 03.

 

BOMFIM, Joelma Boaventura da Silva. Artigo: O Lugar do Ser Humano na Formação do Bacharel em Direito. Mimeo, p.25 .

 

[iii] FREIRE, Paulo. Educação e Mudança, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

 

[iv] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda, Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Nova Fronteira. 1988. cit., p.488.

 

[v] FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder, São Paulo: Globo. 2000, p. 734.

 

[vi] FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder, São Paulo: Globo. 2000, p. 734.

 

[vii] FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder, São Paulo: Globo. 2000, p. 742.

 

[viii] FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder, São Paulo: Globo. 2000, p. 744.

 

[ix] FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder, São Paulo: Globo. 2000, p. 745.

 

[x]FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder, São Paulo: Globo. 2000, p. 745.

 

[xi]JÙNIOR, Edílson Pereira, O Direito Brasileiro e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, Universidade Federal de Pernambuco, disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=161, acessado dia 05/11/2005 às 13:30:22.

 

[xii] LACOMBE, Américo Jacobina. Escravidão. Arquivos do Ministério da Justiça, Brasília, ano 41. n. 171, 1988, p. 17-32, jan./mar.

 

[xiii] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 16ª edição, São Paulo: Malheiros:1998., p.177.

 

[xiv] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 288, et seq).

 

[xv] FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, Rio de Janeiro: Renovar. 2001, p. 33.

 

[xvi] FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, Rio de Janeiro: Renovar. 2001, p. 33.

 

[xvii] STRECK, Lenio luiz. A Constituição e o Construir da Sociedade: A Função Social da Propriedade (e do Direito) – Um Acódão Garantista. In, Questões Agrárias: julgados comentados e pareceres. Juvelino Strozake (coord.) Ed. Método, SP, 2002, p. 38.

Artigo publicado no site PesquiseDireito.com em 15.12.2005