Stanley Tookie, Foucault e Schwarzenegger: Reflexões sobre a Pena de Morte

 

João José Leal*

           

            1. Introdução: Execução de Stanley Tookie Williams e a Repetição do Ritual da Barbárie

Os atores e expectadores podem mudar, mas a História se repete. Nos meus tempos de estudante de Direito, houve uma campanha mundial em favor da comutação da pena de Caryl Chessman, o famoso bandido da luz vermelha. Condenado por assaltos com estupros e assassinatos, foi executado 15 anos após sua condenação, quando já se tornara um escritor conhecido em todo o mundo, por seus quatro livros publicados. Havia se regenerado na prisão (se é que podemos utilizar este termo de forma cientificamente válida) e queria continuar vivendo, mesmo que tivesse que passar o resto de sua vida no cárcere.

Agora, foi a vez de Stanley Tookie Williams. Também condenado por graves e violentos crimes e se transformado num conhecido escritor de livros infantis, acabou executado na última terça feira, 24 anos após sua condenação. Repetindo a história, a execução do condenadoescritor, também suscitou uma onda de protestos, não só nos EUA, onde as manifestações foram mais ostensivas e voltou-se a questionar a legitimidade políticojurídica da pena capital.

Em todo o mundo, também, principalmente na União Européia, que hoje forma um bloco de nações abolicionistas, houve intensas manifestações contra esta forma radical e desumana de resposta punitiva estatal. Em relação à execução de Stanley Tookie, a intolerância oficial - representada por um personagem da cinegrafia do terror e da violência - não levou em conta os protestos de boa parte da opinião mundial, nem o tempo já decorrido desde a prática dos crimes e nem, muito menos, os princípios humanísticos orientadores do Direito Penal do Estado Democrático, que condenam a adoção e a aplicação da pena capital.

 

2. Prisão de San Quentin: Abatedouro Institucional de CondenadosEscritores

Também a exemplo de Chessmann, Stanley Tookie foi executado na mesma penitenciária californiana de San Quentin, que agora ressurge para a fama midiática como uma espécie sinistra de abatedouro institucional de condenadosescritores. Trata-se de um estabelecimento que, por coincidência ou ironia, contraditoriamente, leva o nome de um dos santos da Igreja Católica. Justamente, esta Igreja que, em sua origem, foi criada e consolidada pelo sacrifício de milhares e milhares de cadáveres dos mártires cristãos, que sucumbiram diante da espada do poder punitivo romano dos primeiros tempos de cristianismo de coragem e de rebeldia ao sistema opressor dominante.

 

3. A Hora Silenciosa e Invisível da Execução

O horário da execução, também merece uma rápida reflexão. Tookie foi executado à 0,35h. Depois que a pena de morte perdeu a acessoriedade dos suplícios e tormentos e deixou a cena e o teatro das praças públicas para se refugiar no interior sombrio e silencioso das prisões humanas, consolidou-se um costume macabro de se executar durante a noite. De preferência, por volta da meia noite. A pena de morte deixou o sol das praças públicas, tomadas por multidões de curiosos ávidos para encarar o mistério da morte e foi se confinar no silêncio noturno do interior das prisões.

Parece que a justiça criminal, aquela que ainda pratica a pena de morte,  não quer matar na véspera, nem no dia seguinte.  É como se ela quisesse eliminar o condenado indesejado num tempo abstrato, indeterminado, num momento invisível. Um tempo kafquiano e surreal. Na verdade, não queremos ver, nem sentir, nem preservar na memória ou nos anais da justiça o ato estatal dessa forma de vingança punitiva.

Por ser útil e necessário, o ato de punir pode ser até glorioso. Mas, o efetivo processo de punição continua sendo vergonhoso. Daí o confinamento dos condenados ao cárcere no interior dos muros da prisão. A segregação do condenadopreso, em termos ideológicos, tem um significado para além da sanção em si mesma, que é a  privação da liberdade do infrator da lei penal. Representa, também, a forma de se cumprir uma tarefa pouco simpática e gloriosa, que é a execução da pena de prisão. É preciso o máximo de discrição e o mínimo de publicidade.

Por isso, o melhor administrador de prisão será sempre aquele que tudo resolve intramuros. Aquele que não deixa vazar nenhum problema, nenhum confronto, nenhuma informação. Muitos menos fatos como rebeliões e motins. Aquele não deixa ultrapassar, para além dos muros penitenciários, nenhuma imagem que nos deixe indignados ou nos cause mal estar ou remorsos por integrarmos uma sociedade que produz este antro de maldade e da descondição humana que é a prisão contemporânea.

A sociedade dos nãocriminosos quer isolar e esquecer os seus presos e os seus condenados. Por isso, a justiça criminal sabe que o processo de execução da pena é uma tarefa inglória e muito pouco entuasiasmante, que deve ser cumprido com o mínimo de visibilidade para o mundo exterior.

 

4. Execução da Pena de Morte: Tarefa Vergonhosa do Processo Penal

Se isto vale para a execução da pena privativa de liberdade, vale muito mais para a pena de morte. Para a justiça criminal, a execução da pena capital – até então um ato de legitimidade incontestável - a partir do final do século XVIII, passou a ser considerada uma prática vergonhosa. Agora, é ela praticada às escondidas, longe do olhar favorável e entusiasmado, às vezes, ou contrariado e revoltado, outras vezes, mas sempre acompanhada de um forte sentimento de paixão, da parte do grupo social. Afinal, o sangue de culpados ou inocentes sempre despertou o  sentimento humano em torno da idéia de Justiça.

Embora o tempo e o modo de execução sejam outros, valem as palavras de Michel Foucault, quando escreveu que a pena de morte, após deixar de ser um espetáculo para punir publicamente o corpo do “condenado, supliciado, esquartejado, marcado simbolicamente”, passou a ser “a parte mais velada do processo penal”. Com seu olhar psicanalítico e sutil, chamou a atenção para o fato de que a prática punitiva, no decorrer do final do século XVIII, se tornou mais pudica, no sentido de não mais tocar o corpo do condenado ou de tocá-lo o mínimo possível. E observa, com o sarcasmo que foi sua marca na análise das instituições disciplinares da sociedade humana, especialmente a prisão, que “a execução é como uma vergonha suplementar que a justiça tem vergonha de impor ao condenado”.

Daí a hora silenciosa e invisível das execuções.

 

5. Corredor da Morte: Labirinto Paradoxal da Insensatez Humana

Agora, de forma subliminar, num ritual envolvido pelo manto da preocupação em cortar toda e qualquer idéia de violência física contra o corpo do condenado, a execução da pena de morte se faz por meio de um procedimento médico, com o objetivo de eliminar um de seus componentes somáticos, que é a dor física, mas também um de seus componentes psicológicos, que é o sofrimento moral. Trata-se de um modo de execução que lança mão de uma fórmula, de um receituário médicofarmacológico programado para eliminação da vida, com o mínimo de toque no corpo do condenado.

A justiça criminal, já não encara mais o condenado de frente para o golpe fatal da lâmina ou da corda no pescoço, símbolos de uma concepção de justiça baseada na idéia de ataque ao corpo do condenado. Agora, procura-se eliminar a vida por meio de um sofisticado e sutil procedimento biomédico de asfixia, que submete o condenadopenitente ao macabro itinerário da pena de morte: do corredor das horas torturantes e intermináveis, ao psicotrópico tranqüilizante responsável pelo  sono-ante-sala da pena máxima e absoluta, que chega sob a forma de uma noite tenebrosa e eterna.

Daí a escolha da hora sombria da meia noite. É estranho e macabro. A lâmina fria ou o líquido translúcido da substância letal pelos quais perpassa o princípio ativo da pena de morte, como sanção legalmente instituída, são sempre acionados na calada da noite para percorrer o tormentoso corredor da morte a procura do seu condenadopenitente, a quem foi negado o derradeiro pedido de clemência, geralmente um negro ou pobre.

Na verdade, ao longo dos tempos, o corredor da morte tem sido um sádico e paradoxal labirinto da insensatez humana. Sob tensão psicológica máxima, causada por um prolongado confinamento, submete a uma prolongada espera de anos, contada aos minutos de dias intermináveis, homens marcados para morrer porque um dia mataram também.

 

6. Legitimidade da Pena de Morte em Face do Princípio PolíticoJurídico da Dignidade da Pessoa Humana?

No caso de Stanley Tookie, não se trata de discutir se foi culpado ou inocente dos graves crimes praticados, mas de refletir se a pena de morte é necessária, útil e justa. Muitos argumentos contrários a essa forma de sanção criminal radical e absoluta poderiam ser aqui expostos para demonstrar que, atualmente, ela não passa de uma sanção comprometida com o passado, com a insensatez e com a barbárie humana.

Portanto, uma prática incompatível com o espaço políticojurídico do Estado Democrático de Direito, que se fundamenta sobre o princípio ético inalienável da dignidade da pessoa humana. Tanto que a pena máxima está definitivamente abolida do sistema punitivo brasileiro. Sua adoção afrontaria o princípio fundante de nossa aliança política republicana, consagrado no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal.

O texto constitucional, fiel à nossa tradição humanísticorepublicana e aos compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro, não apenas deixou de adotá-la, mas assumiu uma posição ativamente contrária à pena de morte, proibindo expressamente a sua adoção, como forma de resposta punitiva necessária, útil e legítima para o combate à delinqüência de qualquer espécie, salvo em caso de guerra declarada (art. 5º, inc. XLVII, letra a).

A própria Convenção Americana sobre os Direitos Humanos - Pacto de San Jose da Costa Rica – condena a adoção da pena de morte. Porém, é lamentável que tenha ressalvado a hipótese de o Estado-Parte, que a adotasse na época de sua assinatura, pudesse continuar com esta prática eticamente condenável. É evidente que a injustificável ressalva constituiu uma solução conciliatória  para obter a adesão da poderosa nação norteamericana.

 

No entanto, a mesma Convenção prescreve que nenhum Estado poderá restabelecer a pena de morte, no caso de sua abolição (Art. 4, 3). É o caso do Brasil e das demais nações americanas signatárias desse importante texto convencional para a consolidação de uma prática jurídica de respeito aos direitos humanos, no continente americano. No que diz respeito ao nosso país, o texto convencional foi promulgado através do decreto 678, de 06.11.92, e a Convenção Americana é agora parte integrante do nosso sistema jurídico.

Na verdade, já não existem mais condições políticas, filosóficas ou jurídicas para se sustentar a utilidade e a necessidade dessa solução punitiva radical e violenta. Muito menos, para se defender o pressuposto ético de que se trata de uma pena justa. Duzentos anos após o raiar éticopolítico do Século das Luzes, muito já se avançou na construção de um sistema penal de compromisso com o humanismo. Embora estejamos muito longe da utopia de praticarmos um Direito Penal que garanta a segurança coletiva e respeite os princípios humanísticos fundamentais, não podemos negar as conquistas políticojurídicas consolidadas ao longo desses dois séculos de prática democrática. Basta atentarmos para o catálogo de garantias e direitos fundamentais insculpidos nos textos constitucionais contemporâneos.

Diante desse incontestável avanço éticopolítico e jurídico, é evidente que a pena de morte representa hoje um atentado ao princípio da humanidade da pena e da dignidade da pessoa humana e, por isso, deve ser erradicada do espaço de atuação legítima da justiça criminal do Estado Democrático.

Quanto aos Estados norteamericanos, que ainda adotam a pena de morte e que dispõem de competência própria para legislar em matéria penal e processual penal, cabe almejar que, num futuro próximo, venham a abolir esta forma ultrapassada e desumana de resposta punitiva estatal.

 

7. É Justa a Execução à Morte, 24 Anos Após a Condenação?

Sobre a execução de Stanley Tookie, basta uma reflexão simples e objetiva para nos convencer da desnecessidade e inutilidade da pena de morte: afinal - em termos de justiça criminal - tem qualquer sentido executar à morte um condenado depois de 24 anos na prisão? Sob este aspecto, a pena capital tem sido sempre assim: um ato de vingança tardiamente aplicado, para reabrir chagas e sofrimentos. Caryl Chessmann esperou mais de 15 anos no corredor da morte (San Quentin, Califórnia); Frederick Lashley, condenado aos 17 anos de idade, esperou 12 anos para ser morto na ponta da agulha da vingança estatal (Potosi, Missouri); Danny e Curtis Harris, (Huntsville, Texas) e  Kernit Smith, (Raleigh, Carolina do Norte), mais de 15 anos;  Richard Snell, mais de 12 anos (Varner, Arkansas); Vera Barfield, mais de seis anos (Raleigh, Carolina do Norte).

São apenas alguns casos de execução à morte noticiados pela mídia, mas suficientes para demonstrar que a pena de morte, para além de ser uma sanção desnecessária, inútil e injusta é sempre uma resposta punitiva tardiamente aplicada. Sempre que a justiça criminal aciona a espada da sanção radical e sem retorno ou a agulha para inocular o veneno mortal, a pena de morte apresenta-se como a emissária da intolerância que não arrefece, da vingança tardia e do rancor intemporal determinado a abater aquele que um dia foi marcado para morrer. 

Um pouco pela própria morosidade; outro pouco pelo excesso de preocupação com um possível e insanável erro judiciário e, muito mais, pelo constrangimento causado pela prática do ato inglorioso, a verdade é que a justiça criminal parece ter vergonha de praticar a pena capital. Por isso, a sua execução acaba sendo protelada para um tempo bem posterior ao do fato criminoso. Assim, a pena de morte é a resposta futura, mas contraditória e insensatamente tardia, para reprimir um ato criminoso do passado relativamente distante no tempo. Apresenta-se ela para cumprir sua sinistra tarefa num tempo muito a frente do momento histórico em que o crime foi praticado. O infrator da lei penal - agora na condição de condenado inapelável da justiça criminal – já não será o mesmo indivíduo do tempo de seu crime. Transformado para melhor ou pior no torturante corredor da morte - verdadeiro curtume da alma humana - o condenado chega ao momento final de sua existência com hora marcada para morrer, completamente descolado de sua identidade psíquica ou de sua personalidade ética contemporâneas ao momento criminoso.

Por isso, a pena de morte não passa de um ritual de insensatez, que a justiça criminal de algumas sociedades contemporâneas ainda resistem em manter e, ocasionalmente, em aplicar. Mas, não sem o constrangimento sentido pela prática de um ato que, cada vez mais, revela-se como atentatório à dignidade da pessoa humana.

 

 8. Arnold Schwarzenegger, Ator e Magistrado Supremo do Estado Califórnia

Quanto a Arnold Schwarzenegger - erigido à condição de magistrado máximo, em matéria de pena capital – tem ele o poder de decidir sobre vida e a morte dos cidadãos condenados pelas leis do Estado da Califórnia. E é suficientemente triste saber que continua sendo o ator principal de filmes de violência, de terror e de insensatez humana.

Só que agora, infelizmente, são filmes de verdade.

*Professor do Curso de Pósgraduação em Ciência Jurídica - CPCJ/UNIVALI. Ex-Procurador Geral de Justiça de SC e ex-Diretor do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Regional de Blumenau – SC.