Salvem-se quem puder: A pena e o STF

 

 

 

o juiz não é uma máquina automática na qual por cima se introduzem os fatos e por baixo se retiram as sentenças, ainda que com ajuda de um empurrão, quando os fatos não se adaptem perfeitamente a ela[1]

 

 

Alguns dias atrás (05/02/2009) os Ministros do Supremo Tribunal Federal, por sete votos a quatro, decidiram que aquele que for acusado pela prática de um crime somente poderá ser preso após ser condenado e esgotados todos os recursos nas instâncias superiores. A fundamentação da decisão preconiza-se basicamente em prol do respeito ao princípio constitucional da presunção da inocência (STF, HC 84.078-7, Pleno, Rel. Min. Eros Grau, j. 5.2.2009. Art.5o , inc. LVII, da Constituição Federal: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença condenatória”). As conseqüências que tal decisão trará, no entanto, são bastante preocupantes. Algumas considerações podem ser feitas, analisando a referida decisão, bem como os caminhos propostos pela nova política criminal que irá surgir de acordo com esta recente posição da Suprema Corte.

 

                                   Poderíamos concluir de imediato que tal decisão irá retirar – e muito – o poder dos Juízes criminais e dos Desembargadores dos Tribunais de Justiça, pois as sentenças condenatórias, salvo situações especialíssimas,  restritas somente as circunstâncias que permitem uma prisão preventiva,   não terão o poder de ordenar a prisão do condenado. Ou seja, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, qualquer execução provisória da pena, torna-se indevida, a não ser que o réu preencha alguns dos requisitos propostos no artigo 312 do Código de Processo Penal: garantia da ordem pública, garantia da ordem econômica, conveniência da instrução criminal e garantia da aplicação da lei penal.

 

                                De nada mais servirá a sentença e o acórdão condenatório, respectivamente de primeiro e segundo grau, quanto à possibilidade da antecipação da execução da pena, pois se entende agora, que tal feito seria uma violação do princípio da presunção da inocência. Mesmo o sujeito condenado nestas instâncias, de modo algum terá a sua liberdade cerceada sem o crivo final da Suprema Corte. Os efeitos devolutivos e suspensivos impostos agora pelo Supremo Tribunal Federal coibiram todo o poderio discricionário do judiciário local. O acórdão confirmatório da sentença condenatória ou o próprio acórdão condenatório, sem transitar em julgado, não poderá ser executado provisoriamente. Trocando em miúdos: O condenado criminalmente, não será preso pelo Juiz da Comarca, a qual ele cometeu o crime, tampouco pelos Desembargadores do Tribunal de Justiça, onde certamente – e tendo condições pra isso, principalmente financeira – irá recorrer até a última instância.

 

                             As ações penais com réus soltos tornar-se-ão um mero “faz de conta”. Pois, muito provavelmente, várias decisões condenatórias certamente irão prescrever. Imaginemos a enxurrada de recursos que visam somente procrastinar o trânsito em julgado da sentença, fazendo-se motivadamente com um único objetivo: a não apreciação do exame pelo STF. Nas vozes dos mesmos Ministros que votaram nesta nova resolução, tal fato (se acontecer) poderá demorar até 10 anos, dependendo claro, dos inúmeros e sucessivos embargos de declaração, habeas corpus, mandados de segurança, etc. Se hoje presenciamos uma sistema judiciário mais que saturado pelo volume de processo criminais, quiçá daqui a alguns meses, onde de acordo com a nova decisão, o discurso oficial será: - Recorrer sempre!

 

 

Algumas questões trazem muita  preocupação, o que gera, não apenas instabilidade e insegurança jurídica, mas também algumas indagações práticas. Os mais visionários (defensores, claro!) poderão prever que as únicas autoridades que terão o poder de prisão (escusando as prisões preventivas) serão somente o Delegado de Polícia na lavratura do Auto de Prisão em Flagrante e, agora,  os Ministros do STF, em último grau de instância. Parece-nos ridículo, senão fosse mais um imenso equívoco ministerial, a qual deixa de lado o entendimento paroquial de juízes de primeiro grau e desembargadores. Magistrados que conhecem a realidade local, ainda que em seus gabinetes e com toda a instrução processual em mãos, não poderão determinar uma prisão condenatória em decisão final de mérito. Muito ao contrário do atropelo das decisões tomadas nos interiores das Delegacias de Polícia, tudo em questões de minutos, onde a Autoridade Policial, assim que reconhecer os pressupostos da lavratura de Auto de Prisão em Flagrante, contidas no art. 302 do Código de Processo Penal, procederá a formalização da prisão do “suposto” autor do ilícito -  “suposto” porque ainda não foi judicialmente reconhecido como autor condenado. Tudo isso, sem observar as condições e características do evento criminoso, razões mais que significativas para cercear a liberdade de alguém.

 

Aliás, se considerarmos a aplicabilidade absoluta do princípio da presunção da inocência como quer o Supremo, a própria prisão em flagrante poderá ser eivada de vício constitucional ainda que pese a própria confissão do autor.  Ora, vivenciaremos um estranho paradoxo, pois se a Polícia detém o poder de prisão, baseado simplesmente nas condições – ao menos aparente – do art. 302 do Código de Processo, momento em que conforme já sabemos não impera os princípios do contraditório e da ampla defesa, muito mais razão assiste a legitimidade da deliberação do juiz singular da causa, onde após todo o trâmite do procedimento judicial proposto, em que são ouvidas testemunhas, o próprio acusado e na observância de todo material probatório, ao final decide ou não pela execução imediata da pena.

 

Outras questões, ainda que secundárias poderiam ser levantadas: - Poderá o Delegado de Polícia lavrar o Auto de Prisão em Flagrante em um caso de menor relevância, em que o infrator seja primário e tenha residência fixa, ou seja, naquele ato em que não configuraria a necessidade de uma prisão cautelar? E mais: - A quem cabe, pelo menos na fase policial, a discricionariedade de tal ato? Ao juiz de primeiro grau? Parece-nos que não, pois lembramos que agora, a prisão do autor do crime, não estando justificado em uma prisão preventiva ou temporária, ser dará somente após o crivo dos onze Ministros do STF.

 

                            Enfim, são essas algumas poucas das inúmeras indagações que serão suscitadas no vigor do presente posicionamento da nossa mais alta Corte. Dúvidas? Muitas.

 

                           Aprendemos já no primeiro ano de faculdade que a política criminal adotada por um Estado Social, pressupõe a possibilidade concreta de organização de combate ao sentimento de insegurança provocado pelas erupções violentas do fenômeno da criminalidade. Organização esta,  que não se opera somente no dogmatismo da pura norma legal de Kelsen, fazendo-se necessário, conforme os ensinamentos de Fernando Galvão, uma real concentração não somente nos fundamentos teóricos do sistema repressivo, mas, sobretudo, no aprimoramento da sensibilidade para compreender os dados empíricos da realidade sancionatória[2].

 

                          Muito ao contrário do posicionamento da Suprema Corte, que ao considerar a aplicabilidade da prisão somente no final do trânsito em julgado da sentença, joga em uma vala comum todas as espécies de ilícitos penais, suas características, circunstâncias e principalmente, a gravidade do delito e da real - e empírica - necessidade da aplicação imediata da pena. Plagiando o próprio jargão popular, desabafamos: “cada crime, é um crime diferente”. E claro, todos aqueles que participaram do evento criminoso deverão ser tratados especial e  individualmente, considerando a importância da maior decisão dada ao caso concreto, ou seja, a própria sentença, sendo ela condenatória ou absolutória. 

 

                           Privar o juiz singular de aplicar a pena após sua sentença condenatória é não somente um “garantismo às avessas”, mas um desrespeito a todo sistema punitivo, pois a abstração teórica da dogmática jurídico-penal acaba por afastar não somente a aplicação do direito, mas a possibilidade da realização da justiça material em conformidade com o mundo empírico. A inércia judicial, a qual propõe o Supremo, vai criar um vácuo entre a normatividade penal amparada pelo Estado como detentor do poder de punir e as circunstâncias individuais e sociais contemporâneas, circunstâncias empíricas, baseadas no dinamismo e na vitalidade deste “mundo-aí[3].

 

 

                             Retirar-se-á o juízo de valoração das autoridades judiciais de primeiro e segundo grau,  não só desprestigiando o poder judiciário local, mas sim, concentrando e totalizando todo o sistema punitivo nas mãos de apenas onze juízes. Magistrados que, embora indubitavelmente competentes, de forma alguma possuem toda a percepção necessária na aplicação do Direito em todos os processos criminais existentes. Surgirá aquilo que Remi Lenoir chamou de “mal-estar no meio judiciário” ou ainda “crise da justiça”, (se é que já não exista). Ambas expressões que designam, simultaneamente, um problema social – o crescimento da delinqüência e o sentimento da insegurança.[4]  

 

                            Não somos ingênuos o bastante, ao ponto de acreditar que a nova decisão do Supremo baseia-se somente em questões de política criminal. Muito mais que isso, é evidente o apelo político-circunstancial que impera na problemática do nosso sistema penitenciário: as condições estruturais de aprisionamento, a superpopulação carcerária, a não segregação necessária baseada na especificidade da gravidade e espécie dos delitos, e por óbvio, o desrespeito aos direitos fundamentais. Principalmente em nosso país onde a prisão é vista pela sociedade como símbolo da máxima (senão única) efetividade e aplicação do Direito Penal, onde o direito de punir é confundido com o direito de vingança. Assim, basta ver – e não é difícil – as manchetes diárias de nossos jornais escritos e televisivos. Não é raro ver presos dependurados em grades, “tristes homens-morcegos”[5], que vivem na escola do crime, na incubadora da maldade, casulo de desesperados e amaldiçoados, como bem preconiza o eterno professor e orientador João José Leal.

 

                            O que fazer então? Abrir-se-ão todos os cadeados? Simplista demais, atitude fácil, se por fim, funcionasse. Mas sabemos que não é bem assim. Tal postura cheira a fraude, beira ao engano, pois de imediato percebemos o desrespeito as próprias funções da pena e por óbvio dos direitos fundamentais de toda uma sociedade. Liberar criminosos (politicamente, conforme deseja o STF) meramente com base nas condições de nosso sistema carcerário, não é a melhor saída, tampouco resolverá tal problema. É  apenas, como dizem os antigos “tapar o sol com a peneira”, ou simplesmente transferir o problema de local, e claro, para o ambiente propício da impunidade e insegurança. É necessário fazer valer os diversos  fundamentos da aplicação da pena, em especial o da ressocialização do criminoso visando evitar a sua reincidência. Acabar com o ciclo do crime-condenação-prisão.  Fazer com que este preso mereça, por condições próprias, viver em liberdade, e não somente por questões políticas. A prisão é ainda a detestável solução de que não se pode abrir mão[6]. Ainda indispensável para um tipo de sociedade como a nossa, por um único motivo: infelizmente não conhecemos nada que a substitua.

 

 

                           Sabemos que de todas as causas jurídico-sociais que geram impunidade, uma aqui merece atenção. É a não resposta estatal de forma célere ao evento criminoso. Não somente na elucidação do crime, mas na própria punição do autor. E antes que os mais céticos venham justificar  a “morosidade” da justiça com base “numa melhor apreciação dos fatos”, afirmamos que, de nada vale o cumprimento de uma pena, no crime de furto de pequena monta por exemplo, após dez anos de trâmites judiciais. Perde-se não somente o tempo, mas o sentido da punição, e a credibilidade da própria Justiça, ainda mais em crimes considerados não tão graves. Certo seria, e aí todos nós concordaríamos, se todos os trânsitos em julgados das sentenças condenatórias acontecessem em semanas ou meses, mas não em dez anos, como bem disse o Ministro Joaquim Barbosa. Voto vencido na fatídica decisão, relatando que em apenas um processo criminal sob sua responsabilidade a defesa do acusado impetrou 63 recursos. 63 recursos? Isso é boa defesa? Não, apenas patifaria!

 

Por fim, podemos concluir que aqueles que tiverem bons advogados conseguirão impetrar um maior número de recursos, com a mera finalidade de forçar a prescrição de suas ações penais. É possível prever que serão colocados em liberdade milhares de acusados que se encontram presos hoje (criminosos de colarinho branco, homicidas, latrocidas, traficantes, estupradores), pois ainda não tiveram seus recursos julgados em última instancia. Então resta a pergunta:  - De que forma o Estado irá se adaptar a esta nova política criminal?

                                  

Tais indagações somente poderão ser respondidas com o tempo, mas o que resta agora é tão somente a certeza de um resultado: a presença da célebre dicotomia de Norbert Elias: Os Estabelecidos e os Outsiders[7]. Ou seja, os ricos, com condições de custear uma boa defesa, conseguirão permanecer em liberdade e com a confiança da impunidade. O criminoso pobre – aquele que não tem dinheiro para custear seus recursos judiciais – restará apenas o aguardo do trânsito em julgado da sentença ainda em primeiro grau, para em seguida ser trancafiado. São eles, os mais carentes, aqueles que não tiveram condições de pagar um bom advogado, que continuarão presos. O que, convenhamos, já não surpreende, não é novidade para mais ninguém em nosso país. De resto: - Salvem-se quem puder!

 

 

 

Autores:

 

Rodrigo Bueno Gusso:  Delegado de Polícia Civil em Santa Catarina, Especialista em Segurança Pública, Mestre em Direito e Doutorando em Sociologia.

Rubens Almeida Passos de Freitas: Delegado de Polícia Civil em Santa Catarina. Pós-graduando em Direito

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

 

ELIAS, Norbert; SCOTSO, John L. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores. 1999.

 

FOUCAULT. Michel. Vigiar e Punir. 26ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

 

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

 

GALVÃO, Fernando. Política Criminal. Volume 1. 2ª Ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.

 

LEAL, João José. Penitenciarismo brasileiro, sombra sinistra da sociedade desajustada em  que vivemos. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais. Ano 83, agosto 1994, vol. 706.

 

LENOIR. Remi. Desordem entre agentes da ordem. A miséria do mundo. 3ª ed. Petrópolis,  R. J: Vozes, 1997.

 

MAFFESOLI, Michel. Elogio da Razão

 

[1] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002 p. 33.

[2] GALVÃO, Fernando. Política Criminal. Volume 1. 2ª Ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 106.

[3] Expressáo utilizada na obra Elogio da Razão Sensível. Maffesoli, Michel. Elogio da Razão Sensível. Petrópolis: Saraiva, 1998. p. 20.

[4] LENOIR. Remi. Desordem entre agentes da ordem. A miséria do mundo. 3ª ed. Petrópolis,  R. J: Vozes, 1997.p. 267.

[5] Leal, João José. Penitenciarismo brasileiro, sombra sinistra da sociedade desajustada em  que vivemos. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais. Ano 83, agosto 1994, vol. 706, p. 437.

[6] Foucault. Michel. Vigiar e Punir. 26ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 196-252.

[7] ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores. 1999.