Teto Salarial da Magistratura, Interpretação Conforme a Constituição e  Jurisprudência do STF em Desconformidade com o CNJ

 

 

 

 

            João José Leal

            Livre Docente-Doutor – UGF/FURB. Professor do Curso de PósGraduação em Ciência Jurídica – CPCJ/UNIVALI.

Ex-Procurador Geral de Justiça de SC e

Ex-Diretor do CCJ/FURB - Associado do IBCCrim e da AIDP.

 

 

           

Sumário

 

1. Introdução – Subsídios dos Ministros do STF, Teto Salarial dos Magistrados e a Novela de um Julgamento Intra Corporis. 2. Tribunais Estaduais de Justiça na Contramão da Hermenêutica do CNJ em Matéria de Limite Salarial. 3. Posição do STF sobre o Subteto Remuneratório para a Magistratura Estadual: uma decisão de desprestigio ao Conselho Nacional de Justiça. 4. Conceito Jurídico de Subsídio e Exceções ao Teto Salarial na Jurisprudência do STF. 5. Direito Adquirido, Princípio da Moralidade e Legitimidade ÉticoJurídica da Norma Constitucional  sobre Teto Salarial. 6. Direito Adquirido e Irredutibilidade de Vencimentos em Face da Norma Constitucional Fixadora do Teto Salarial para a Magistratura. 7. Considerações Finais. 8. Bibliografia.

  

Resumo

 

O presente artigo analisa a questão do teto e do subteto salarial previsto no inciso XI, do art. 37, da CFRB e a interpretação dada ao conteúdo deste dispositivo constitucional pelo Conselho Nacional de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal. Com base na teoria da Supremacia éticopolítica e jurídica da Constituição como Lei Fundamental e de hierarquia jurídica suprema, o texto analisa, também, os princípios do direito adquirido e da irredutibilidade de vencimentos em face da eficácia de norma constitucional em contrário.

  

Palavras-chave

 

Subsídio. Remuneração dos magistrados. Teto salarial. Irredutibilidade de vencimentos. Direito Adquirido. Interpretação conforme a Constituição. Conselho Nacional de Justiça.

 

 

 

 

  

 

1.      Introdução - Subsídios dos Ministros do STF, Teto Salarial dos Magistrados e a Novela de um Julgamento Intra Corporis

 

Uma verdadeira novela marcada por diversos capítulos e, ainda, inacabada. Assim pode ser vista a questão relativa ao teto remuneratório dos magistrados brasileiros. Em março de 2006, o Conselho Superior de Justiça – CNJ – havia aprovado a Resolução de Nº 13/06, por meio da qual estabeleceu o limite salarial para os magistrados brasileiros.

 

Com base no comando normativo contido no inciso XI, do art. 37, da CRFB e tendo em vista o valor remuneratório fixado no art. 3º, da Lei Nº 11.143/2005, o CNJ determinou que, no poder judiciário estadual, o limite salarial é de R$ 22.111,25, equivalente a 90,25% do teto da justiça federal, que é de R$ 24.500,00 e que corresponde aos subsídios pagos aos ministros do Supremo Tribunal Federal - STF. Ou seja, nos Estados - em regra, porque há  exceções – nenhum magistrado poderia receber remuneração superior ao referido limite salarial.

 

Estudo elaborado e divulgado pelo próprio CNJ, em seu sítio eletrônico, mostra que existiam 2.978 juízes e funcionários no judiciário brasileiro, recebendo acima do teto salarial. Em média, esses magistrados e funcionários ganham cerca de R$ 3.491,00 acima do limite permitido pela Constituição Federal e pela Resolução 13/2006, do próprio CNJ.

 

O maior salário apurado seria de RS$ 34.800,00, mais de R$ 10 mil acima do teto constitucional e é pago pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, onde existiriam 1.208 magistrados e funcionários em situação irregular, ou seja, com salários ou subsídios acima do teto remuneratório estadual.

 

A grande maioria dos tribunais estaduais vinha resistindo em cumprir a determinação contida na referida Resolução. Diante dessa atitude de desobediência civil-administrativa, em sua reunião do dia 31 de janeiro, do corrente ano, o CNJ determinou aos presidentes dos respetivos tribunais estaduais o enquadramento salarial imediato de seus magistrados e servidores aos limites fixados na lei e na Constituição Federal.

 

Depois de muita discussão e, também, de muita pressão dos presidentes de tribunais estaduais, o CNJ havia apreciado a situação salarial dos tribunais do Amapá, Acre, Mato Grosso, Maranhão, Minas Gerais, Paraíba e do Rio Grande do Norte e determinado o enquadramento salarial ao subteto estadual.

 

A decisão do dia 31 de janeiro levou o presidente da Associação Nacional dos Juízes Federal (Ajufe), Walter Nunes, a afirmar que, agora, "estamos no caminho certo. O Judiciário, que era considerado a caixa preta, deu o exemplo". No entanto, pelo desdobramento que a seguir foi dado à questão, o exemplo não pode ser interpretado como um compromisso do Judiciário com o caminho certo em termos de princípio da moralidade na administração pública.

 

É que, após determinar que os tribunais de justiça, federais ou estaduais, cumprissem o teto e subteto salarial estabelecido para os magistrados e servidores do Poder Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ – em sua sessão do último dia 13 de fevereiro, decidiu suspender o julgamento dos processos referentes aos demais tribunais estaduais, que ainda não haviam sido objeto de exame. Resolveu o CNJ aguardar o julgamento da ADIn impetrada junto ao STF pela Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB.

Para o juiz Rodrigo Colaço, presidente da entidade representativa dos magistrados estaduais, é inadmissível, por ser inconstitucional, a fixação de dois limites salariais: um federal, mais elevado e outro, estadual, de valor inferior.  Defende a fixação de um limite salarial no âmbito do Poder Judiciário brasileiro. Mas, condena a norma que estabelece dois limites remuneratórios – um para o judiciário da União e outro menor para o judiciário dos Estados – por considerá-la discriminatória e contrária ao principio federativo, que assegura autonomia políticoadministrativa e financeira aos Estados-membros.

 

Por isso, ingressou com a ADIn sobre o polêmico assunto, questionando apenas a legitimidade constitucional de um subteto salarial para a magistratura estadual, cuja decisão liminar fulminou com a posição do CNJ e  será comentada abaixo.

 

2.      Tribunais Estaduais de Justiça na Contramão da Hermenêutica do CNJ sobre Limite Salarial dos Magistrados

 

Criou-se uma séria divergência entre o entendimento do CNJ e o da maioria dos tribunais estaduais sobre a matéria. Há uma verdadeira fissura hermenêutica, que coloca de um lado o órgão de controle máximo da magistratura brasileira e do outro a grande maioria das cortes estaduais de justiça. Principalmente, por causa do reconhecimento, pelo CNJ, da legitimidade jurídica de um subteto salarial. Mas, também pela questão do limite remuneratório máximo equivalente ao valor dos subsídios dos ministros do STF.

 

Foram inúmeras as manifestações de inconformismo contra a decisão CNJ, por parte de presidentes desses tribunais. Entre eles, está o desembargador Celso Limongi, presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, que afirmou estar convicto de que “não há irregularidades” no âmbito de seu tribunal (Folha de S. Paulo, 01.02.2007, A13).

 

Uma semana depois, discursando na sessão de abertura do Ano Judiciário, no Palácio de Justiça de São Paulo, o presidente do TJSP voltou ao tema e condenou o que chamou de “uma blitz contra a magistratura estadual,” para violar direitos adquiridos de uma forma que “não aconteceu nem mesmo no movimento militar de 1964.”

 

Com ironia, iniciou seu discurso, referindo-se aos novos arautos da moralidade, que mais parecem os habitantes da caverna de que falava Platão, confundindo com a verdade as sombras projetadas nas paredes”. Numa clara alusão aos membros do CNJ, afirmou em seu discurso que esses novos arautos acreditam possuir  “o apanágio das virtudes e a onisciência de tudo que deva ser feito para o Judiciário.” Por isso, pretendem reduzir ou desqualificar a importância do Judiciário estadual”.

 

No vértice do triangulo hermenêutico, está a Suprema Corte, que tem assumido posições ambíguas sobre a questão.

  

3.      Posição do STF sobre o Subteto Remuneratório para a Magistratura Estadual: uma decisão que desprestigia o Conselho Nacional de Justiça

 

No tocante ao subteto para os juízes estaduais, a posição do CNJ ficou completamente superada. Ao menos temporariamente. No julgamento da ADIn nº 3854, em data de 28.02.2007, o STF concedeu liminar à AMB e suspendeu a aplicação desse limite inferior de remuneração para os magistrados estaduais. Para a Corte Suprema, o princípio da isonomia impõe que os juízes estaduais e federais devem ser tratados de maneira igual, sem distinções. Os ministros salientaram que “o Poder Judiciário brasileiro é um só (uno), por isso não se justifica o tratamento desigual entre os magistrados, sejam estaduais ou federais”.

Pela decisão, tomada por maioria e interpretativa do disposto no artigo 37, incisos XI e XII, da CFRB, o plenário do STF decidiu suspender a submissão dos membros da magistratura estadual ao subteto de remuneração. Com a decisão, ficou suspensa a eficácia do artigo 2º da Resolução 13/2006 e do parágrafo único do artigo 1º da Resolução 14/2006, do CNJ.

Embora tomada em caráter liminar, a decisão representou uma autêntica pá de cal na posição assumida pelo CNJ sobre a questão do subteto para a magistratura estadual. Representou, também, apesar dos princípios jurídicos constitucionais referidos no voto do ministro-relator, uma decisão política, no sentido de submeter o Conselho a uma verdadeira capitis deminutio.

É sabido que esse órgão máximo de fiscalização do judiciário brasileiro foi criado sob o signo da desconfiança e da resistência dos próprios magistrados brasileiros. E o STF, em parte, não deixa de refletir esse sentimento de séria restrição às competências administrativas do Conselho. Este vem operando sob o rígido controle da maioria de seus pares, que atuam apenas na Suprema Corte.

No caso do subteto salarial para a magistratura estadual, é preciso considerar que o CNJ fundamentou sua posição em comando constitucional expresso e em decisão do próprio STF que, em julgamento de caso semelhante, mas relacionado aos subsídios do Ministério Público, havia assentado a validade jurídica do referido subteto. E, no entanto, acabou desautorizado pela Suprema Corte.

 

Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal já havia decidido que, com a instituição do subsídio como forma de remuneração única para os magistrados brasileiros, as gratificações, verbas de representação e outras vantagens de caráter pessoal, ficaram absorvidas por esse valor único, que tem por limite remuneratório máximo, o valor do subsídio de ministro do STF (MS 24.875/DF, j. 11.05.2006, DJ 06.10.2006, p. 033).

 

Mas, não havia enfrentado, de forma específica, a questão do subteto remuneratório para os juízes estaduais.

 

A nosso ver, a decisão do STF afrontou normas constitucionais cujos comandos impõem expressamente um limite salarial para a magistratura estadual abaixo do valor do maior subsídio que é o pago aos ministros do próprio Supremo.

 

Neste sentido, cremos que o texto do inciso XI, do art. 37, é expresso e bastante claro ao disciplinar a questão do teto salarial, no âmbito dos três poderes da administração pública brasileira: nenhum vencimento ou remuneração mensal de qualquer espécie poderá exceder o valor do subsídio mensal dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. É, também, explícito ao fixar o subteto remuneratório da magistratura dos Estados-membros em 90,25% do valor do subsídio dos ministros do STF.

 

Assim, se o comando constitucional em exame, apesar de sua origem derivada, tem validade e legitimidade jurídica, principalmente, por atender ao interesse republicano e democrático de garantir uma maior igualdade e justiça salarial na administração pública brasileira, cremos que deve ser o mesmo cumprido sem exceções.

 

O argumento de que o comando do inciso XI, do art. 37, da CRFB, tem origem em Emenda Constitucional e que, por isso, não teria autoridade normativa para desfazer situações jurídicas consolidadas sob o regime constitucional anterior, a nosso ver, não pode prevalecer. Trata-se, na verdade, muito mais de um sofisma do que, propriamente, de um argumento sustentado na lógica jurídica ou na veracidade.

 

Na verdade, o texto original desse dispositivo constitucional já determinava que, no âmbito do Poder Judiciário, a remuneração máxima, a qualquer título, não poderia ultrapassar àquela paga aos Ministros do Supremo Tribunal Federal.

 

A nosso ver, o fundamento da decisão liminar – princípio da isonomia – no sentido de que a magistratura brasileira é uma só, absolutamente, não convence. Principalmente, para fundamentar uma inviável igualdade salarial contra expressa disposição constitucional. O princípio federativo garante autonomia aos Estados-membros e estes têm limites de recursos públicos que não conhecidos pela União. Tanto que, em nome da autonomia administrativofinanceira, a CRFB estabele, também, que os deputados estaduais devem perceber remuneração equivalente a dois terços da remuneração paga aos deputados federais.

 

Portanto, é a supremacia da norma constitucional que, desde a origem da atual Carta Magna, já havia estabelecido o limite remuneratório para os magistrados brasileiros e, por extensão, aos membros do Ministério Público.

 

A ambigüidade e o ilogismo do acórdão - da lavra de um ministro egresso do quadro da magistratura estadual – tornam-se mais evidentes se considerada a norma constitucional consagrada no art. 93, inciso V, da CRFB e que se converteu num dos fundamentos políticojurídicos da decisão. Ali, também, está previsto o limite salarial dos juízes e tribunais estaduais abaixo do valor pago aos ministros do STF e esta norma faz referência expressa ao mencionado inciso XI, do art. 37, da Constituição Federal.

 

Desta forma, estabelecido como está, por meio da Lei Nº 11.143/2005, o valor do subsídio dos ministros do STF, em R$ 24.500,00, a nosso ver, a questão do teto e do subteto salarial deveria estar solucionada, cabendo aos órgãos dos três poderes da República, tão somente, cumprir os mandamentos constitucionais aplicáveis ao caso concreto.

 

Não foi assim que entendeu o pleno do Supremo, ao julgar a ADIn impetrada pela AMB. Ao contrário, negou eficácia a normas constitucionais expressas e garantiu aos magistrados estaduais o mesmo teto salarial dos ministros da Corte Suprema.

 

A decisão se torna ainda mais nebulosa, para não dizer perigosa, quando se verifica que o acórdão não deixou claro se o magistrado, mesmo diante de norma constitucional expressa, pode perceber remuneração acima do valor do teto máximo, agora nivelado em seu limite maior que é o do subsídio dos ministros do STF.

 

Afinal, por meio da Resolução 14/2006 e apesar do teor da norma constitucional expressa, o CNJ respaldou o direito à percepção de determinadas vantagens, classificadas como verbas, de caráter temporário ou permanente, acima do teto salarial, tais como auxílio-moradia, auxílio-transporte, auxílio-alimentação e gratificação eleitoral, entre outras.

 

Cabe reconhecer que há verbas cuja percepção é perfeitamente válida, como aquela referente ao exercício do magistério, fora do horário de trabalho do magistrado. Mas, há outras que se constituem em verdadeiros privilégios, como o auxílio-moradia e a gratificação eleitoral. Trata-se, portanto, de um teto perfurado por uma série relativamente numerosa de auxílios e vantagens não assegurados aos demais servidores da República.

  

4. Conceito Jurídico de Subsídio e Exceções ao Teto Salarial na Jurisprudência do STF

 

Tudo indica que a porteira está aberta para as mais diversas interpretações capazes de romper o limite salarial imposto pela Carta Magna, que se encontra fragilizada e desconsiderada, em termos de autoridade normativa suprema. O postulado da Supremacia da Constituição não está sendo observado com o respeito devido ao Estado Democrático, que deve estar a serviço dos interesses da nação e não de uma determinada classe social.

 

A partir da decisão prolatada quando do julgamento da referida ADIn e com base numa sofisticada hermenêutica conforme a Constituição, provavelmente, não faltarão argumentos os mais diversos e eloqüentes para garantir subsídios com valores muito acima dos pagos aos ministros do STF, como vem acontecendo, contra disposição legal e constitucional.

 

Aliás, a porteira já foi aberta quando do julgamento da pretensão formulada por ex-ministros do próprio Supremo. É verdade que este deliberou que, “no tocante à magistratura, a extinção da vantagem do Adicional por Tempo de Serviço (ATS), decorrente da instituição do subsídio em ‘parcela única’, a nenhum magistrado pode ter acarretado prejuízo financeiro indevido” (MS 24.875/DF, j. 11.05.2006, DJ 06.10.2006, p. 033).

 

Desta forma, e procurando dar contornos jurídicos ao significado remuneratório de subsídio, o entendimento do STF é de que o adicional por tempo de serviço e outras vantagens remuneratórias encontram-se incluídos no valor do subsídio e, por isso, não podem extrapolar os valores fixados para o teto salarial federal aplicável à magistratura brasileira.

 

No entanto, no mesmo acórdão, o STF assegurou aos impetrantes – seus ex-ministros – o direito à percepção do valor da gratificação de 20% sobre os proventos de aposentadoria acima do referido teto. Segundo consta da ementa, ficou estabelecido que “sob o pálio da garantia da irredutibilidade de vencimentos, os impetrantes têm direito a continuar recebendo o acréscimo de 20% sobre os proventos”, até que tal valor excedente venha a ser completamente incorporado ao valor do futuro subsídio majorado e fixado em lei para ministro do STF.

 

Portanto, a posição do Supremo Tribunal Federal é de que, com a instituição do subsídio como forma de remuneração única para os magistrados brasileiros, as gratificações, verbas de representação e outras vantagens de caráter pessoal, foram absorvidas por esse valor único, que tem por limite remuneratório máximo, o valor do subsídio de ministro do STF.

 

Mas, acabou admitindo uma exceção para garantir a seus ex-ministros a percepção de vantagem pessoal da gratificação por aposentadoria, cujo valor pode extrapolar o teto remuneratório.

 

Com a exceção admitida, o STF criou um precedente que pode se transformar num agente complicador, em termos de hermenêutica acerca do verdadeiro sentido do direito contido no art. 37, inciso XI, da CFRB, com a redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional 41/2003. Na verdade, ou esta norma constitucional tem validade jurídica e se aplica erga omnes ou continuaremos com a indesejável indefinição em termos de limite salarial máximo na administração pública brasileira.

 

E essa situação de assimetria salarial, assegurada em nome de normas constitucionais como a da irredutibilidade de vencimentos, do direito adquirido e da coisa julgada, cria distorções remuneratórias que atentam contra princípios também constitucionais e de maior relevância políticojurídica como o da moralidade e da igualdade (e a sua interface da impessoalidade) e o da justiça social.

 

É preciso considerar que a Hermenêutica conforme a Constituição deve conduzir o intérprete a aplicar a norma ou princípio que, com maior carga de razoabilidade, melhor atenda, em relação ao caso concreto, à função social do direito. Em conseqüência, outros princípios e normas também constitucionais poderão ter sua incidência afastada em favor daqueles dotados de maior carga normativa em face do caso concreto.

 

Cremos que, ao validar a percepção de tais vantagens remuneratórias de caráter pessoal e excepcional, o entendimento jurisprudencial da Suprema Corte contrariou, o objetivo republicano de se construir uma sociedade livre, justa e solidária, que possa “promover o bem de todos” (art. 3º, incisos I e IV, da CFRB).

  

5.      Direito Adquirido, Princípio da Moralidade e Legitimidade ÉticoJurídica da Norma Constitucional  sobre Teto Salarial

 

No caso em exame, mesmo que os benefícios salariais excedentes tenham sido conquistados em momento anterior à atual Constituição, a regra do direito adquirido precisa passar por um processo hermenêutico que leve em consideração os princípios também constitucionais como o da moralidade, da interpretação conforme a Constituição e da supremacia da Constituição e compatível com o sistema jurídico do Estado Democrático contemporâneo.

 

Isto significa o compromisso do intérprete com o exame da legitimidade éticopolítica e o caráter de efetiva necessidade do direito individualmente usufruído, em face de uma nova situação jurídica criada por norma constitucional que, por sua natureza, tem eficácia ex tunc e erga omnes.

 

No campo da validade formal, prevalece a doutrina da supremacia da Constituição, o que torna inadmissível a idéia de se garantir direito anterior individual contra expressa disposição constitucional. Neste sentido a doutrina consultada parece não apresentar divergência.

 

Segundo o magistério de Jorge Miranda, com a promulgação da Carta Magna, suas normas constitucionais projetam-se sobre todo o sistema jurídico, impregnando-o dos seus valores e critérios e trazendo-lhe um novo fundamento de validade ou de autoridade.[1] Para o constitucionalista português, a subsistência de qualquer norma ordinária anterior à nova Constituição depende de um único requisito: sua conformidade com a nova ordem constitucional.[2] Em conclusão, assinala que a “superveniência da nova Constituição – ou de uma sua revisão – acarreta ipso facto – pela própria função e força de que está investida, o desaparecimento das normas de Direito ordinário anterior com ela desconformes”.[3]

 

Gomes Canotilho, também constitucionalista português não menos conhecido e respeitado em nosso país, refere-se à Constituição como uma lex superior, dotada de autoprimazia e de superioridade  normativa.[4] Salienta que a “superioridade normativa da constituição” implica o princípio da conformidade de todos os atos do poder público com as normas e princípios constitucionais: “nenhuma norma de hierarquia inferior pode estar em contradição com outra de dignidade superior – princípio da hierarquia – e nenhuma norma infraconstitucional pode estar em desconformidade com as normas e princípios constitucionais, sob pena de nulidade, anulabilidade ou ineficácia – princípio da constitucionalidade.[5]

 

Miguel Serpa Lopes entende que não pode haver direito adquirido em face de norma constitucional. Apoiando-se na lição de Gabba, afirma que “uma nova Constituição Política de Estado tira o vigor a todas as leis de pública e administrativas preexistentes”.[6] Celso Ribeiro Bastos assinala que qualquer norma ou ato jurídico de natureza infraconstitucional “padecerá do supremo vício de ilegalidade” se contrário à Lei Maior.[7]

 

José Afonso da Silva pensa de forma semelhante e admite que o direito adquirido não pode prevalecer sobre o interesse coletivo.[8] Para este autor, as “normas que integram a ordenação jurídica nacional só serão válidas se se conformarem com as normas constitucionais”.[9]

 

É verdade que estas vantagens salariais foram conquistadas em conformidade com a lei positiva então vigente ou em decorrência de decisão judicial. Mas, não podem prevalecer em face da nova ordem constitucional instituída em 1988. Se tais benefícios salariais excedentes ao valor do subsídio pago aos ministros do STF, preexistiam à promulgação da atual Constituição, tornaram-se indevidos por disposição expressa da norma contida no inciso XI, do art. 37, da CRFB. Em sua redação original este dispositivo constitucional, com fundamento no princípio da moralidade, já estabelecera o teto salarial da Administração Pública brasileira vinculado à remuneração mensal dos ministros do STF.

 

Se as referidas vantagens salariais pessoais e excedentes ao teto salarial foram obtidas posteriormente à promulgação da atual CRFB, com muito maior razão são indevidas e nulas de pleno direito. Principalmente, se tais vantagens representam situações jurídicas de caráter pessoal e se foram criadas por leis ou reconhecidas judicialmente para privilegiar seus beneficiários com acréscimos salariais que não foram concedidos aos demais servidores da República.

 

A nosso ver, e isto no campo da validade meramente formal, a tese do direito adquirido, do ato jurídico perfeito ou da coisa julgada somente pode prevalecer em face de norma constitucional expressamente em contrário, se respaldada, também, por sua validade material, isto é, pela efetiva legitimidade do direito individual, após submetido este ao crivo de sua interpretação conforme a própria Constituição.

 

Já na esfera de maior relevância e, por isso mesmo, mais complexa, da validade material, cremos que a manutenção de direito individual contra expressa disposição de mandamento constitucional posterior somente poderá ser admitida em nome de princípios como o da igualdade ou da dignidade da pessoa humana, quando absolutamente indispensável à preservação de um bem jurídico fundamental, como a vida, a saúde, a habitação, a educação etc.

 

Somente assim é que o Direito estará cumprindo sua função social e poderá ser instrumento de realização de uma sociedade mais igualitária e de verdadeiro bem estar social.

 

6.      Direito Adquirido e Irredutibilidade de Vencimentos em Face da Norma Constitucional Fixadora dos Subsídios da Magistratura

 

No caso do teto e subteto salarial em exame, é preciso considerar que a Constituição Federal assegura ao magistrado brasileiro, bem como a todo o servidor público, o direito individual à irredutibilidade de vencimentos. Quanto aos magistrados, é preciso ressaltar que, mesmo considerando-se o teto e o subteto salarial vigente, estão entre os mais bem remunerados do mundo ocidental. E isto, a nosso ver, é o essencial, em termos de hermenêutica e aplicação do direito justo.

 

Além disso, se a Constituição garante a irredutibilidade de vencimento – agora, subsídio - não há em seu texto nenhuma norma de garantia expressa em relação a eventuais vantagens remuneratórias, especialmente, aquelas de caráter pessoal. Muitos desses acréscimos aos vencimentos, mesmo que tenham sido obtidos com base em leis ou em decisões judiciais, sempre tiveram um caráter de excepcionalidade, em relação ao regime salarial geral vigente na administração pública brasileira. Estão, por isso mesmo, muito próximos de verdadeiros privilégios salariais incompatíveis com o princípio republicano, que pressupõe igualdade de direitos entre os cidadãos.

 

Assim sendo, o sentido éticopolítico e jurídico das normas constitucionais garantidoras do direito adquirido, do ato jurídico perfeito, da coisa julgada e da irredutibilidade de vencimentos precisa ser submetido a um processo hermenêutico que leve em consideração, também, outros princípios constitucionais, de igual ou maior relevância, como o da igualdade republicana, o da moralidade e o da justiça social.

 

Assim sendo e se, em nome do princípio republicano da moralidade, o Congresso Nacional emendou a Constituição para explicitar a norma originária que já fixava o teto salarial para a Administração Pública brasileira, a questão da remuneração máxima deveria estar solucionada, com a aplicação da norma a todos os servidores e agentes políticos da República, já tão combalida e sangrando por todos os poros de sua já esticada derme financeira.

   

7.      Considerações Finais: O Inafastável Compromisso com a Ética, a Probidade e a Justiça Social na Administração Pública Brasileira

 

Diante deste quadro hermenêutico realmente obscuro, estamos impedidos de ver solucionada ou, ao menos, definida – não no fundo da caverna imaginada por Platão e ironicamente lembrada pelo presidente do TJSP - mas na superfície normativa da jurisprudência do nosso Tribunal Supremo, a tão discutida quanto necessária questão do teto salarial dos magistrados brasileiros.

 

Por isso, pareceu sem sentido o teor da declaração da presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal - ministra Ellen Gracie - logo após o término da reunião do dia 31 de janeiro. Com uma certa dose de euforia, afirmou que os números desmistificam a "lenda urbana", que acreditava em supersalários no Poder Judiciário. Os demais membros do CNJ também pareciam comemorar o que consideravam “um pequeno número de magistrados e servidores com remuneração acima do teto salarial”.

 

Não cremos que possa haver motivo para comemoração. Ao contrário, é triste ver que, no âmbito do Poder Judiciário, convive-se ainda com privilégios e irregularidades salariais. E eram quase 3.000 magistrados percebendo remuneração que contrariava disposição expressa da Resolução 13/06, órgão máximo em matéria de fiscalização e de ação moralizadora do Poder Judiciário brasileiro. O desalento se torna tanto maior quanto se sabe que tudo isto vem sendo feito com afronta à lei e a mandamentos da Constituição Federal.

 

Para finalizar, queremos deixar claro a nossa crença na importância éticopolítica e jurídica da moderna doutrina dos princípios constitucionais para assegurar a aplicação dos direitos fundamentais e garantias individuais, em favor dos cidadãos da República. Mas, em contrapartida, é preciso, também, que a mesma motivação de natureza éticopolítica e a mesma escala hermenêutica seja, também, empregada para assegurar o interesse maior da República, Mater omne civis.

 

 

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8.      Bibliografia

 

BASTOS, Celso Ribeiro Bastos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1994.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1999.

LOPES, Miguel Serpa.  Curso de Direito Civil. Introdução, Parte Geral e Teoria dos Negócios Jurídicos. Rio de Janeiro: 2000, v. 1,  9ª ed. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999.

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, t. II, Constituição.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1995, 10ª ed.

 


 

[1] Manual de Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, t. II, Constituição,  p. 274

[2] Idem, p. 283.

[3] Ibidem, p. 289.

[4] Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1999, 3. ed., p. 1074.

[5] Idem, p. 1075.

[6] Curso de Direito Civil. Introdução, Parte Geral e Teoria dos Negócios Jurídicos. Rio de Janeiro: 2000, v. 1,  9. ed., p. 205.

[7] Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 47.

[8] Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1995, 10ª ed.,  p. 414.

[9] Idem, p. 50.  Sobre a questão, ver ainda: BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 398 e segs.