VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: Breves Comentários à  Lei Nº 11.340/2006

 

 

            João José Leal

Professor do Curso de PósGraduação em Ciência Jurídica – CPCJ/UNIVALI.

Ex-Procurador Geral de Justiça de SC. Associado da AIDP e do IBCCrim.

 

           

1. Introdução – Uma Lei Marcada por Normas Programáticas e Reafirmadoras dos Direitos Constitucionais Fundamentais

 

            A Lei 11.340/2006, de 08.082006, ainda vai precisar do prazo de vacatio legis, de 45 dias, para poder ser aplicada. Denominada de Lei Maria da Penha, em homenagem a uma das vítimas da violência masculina contra a mulher deste país ainda machista, a  nova lei fundamenta-se em normas e diretivas consagradas na Constituição Federal (art. 226, § 8º), na Convenção da ONU sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher e na Convenção Interamericana para Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Preâmbulo e art. 1º).

 

Seu fundamento políticojurídico, portanto, é admirável e difícil de ser contestado. Porém, seus nobres e altruísticos objetivos de proteção e assistência à mulher  vítima de violência precisarão de muito tempo, de muita vontade política da parte do poder público e de muito avanço éticopolítico para serem alcançados. Quanto às suas normas de natureza restritiva ou repressiva, destinadas ao outro da relação jurídica conflituosa ou de violência, precisam de muita reflexão e discussão acerca de sua legitimidade ética e de sua conveniência jurídica. 

 

Reafirmando normas principiológicas e programáticas consagradas na CFRB e nas convenções acima referidas, a nova lei proclama que toda mulher, independentemente, de classe, raça, etnia, orientação sexual etc., “goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana” e assume a difícil e delicada proposta de assegurar a todas as mulheres “as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social” (art. 2º).

 

Em seguida, o texto normativo dispõe que serão “asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação”  e todos os demais direitos fundamentais (art. 3º). Na verdade, estes últimos, por serem fundamentais, devem ser garantidos a todas pessoas, independentemente de serem ou não mulheres.

 

            Trata-se de lei extensa e repleta de boas intenções em seus 46 artigos, acrescidos de parágrafos e incisos. Seu texto é marcado por um grande número de normas programáticas, como a que determina que o “poder público desenvolverá políticas que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

 

            Portanto, não será fácil cumprir todas as suas normas que prescrevem ações governamentais verdadeiramente transformadoras da realidade socioeconômica brasileira.

  

2. Conceito e Formas Legais de Violência Doméstica e Domiciliar contra a Mulher

 

            A Lei 11.340/2006 criou a categoria jurídica denominada mulher em situação de violência doméstica e familiar, aplicável aos casos em que a mulher for objeto de “ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial” (art. 5º, caput). O texto legal não é claro ao utilizar o termo “gênero”, que deve ter  seu sentido jurídico relacionado à categoria  violência doméstica e familiar.

 

Temos, agora, uma nova categoria jurídica que precisa ser devidamente apreendida em seus contornos fáticos e jurídicos. A primeira observação é a de que, em matéria penal,   as ações mencionadas no texto legal já configuram – em tese -  crimes previstos no Código Penal (homicídio, lesão corporal, estupro etc). Portanto, neste particular, a nova lei tem importância apenas conceitual e restrita ao espaço jurídico deste recém-promulgado Estatuto contra a Violência Doméstica e Familiar.

 

Para a lei, o local em que pode ser praticada a violência doméstica e familiar contra a mulher não se restringe ao espaço demarcado pelo recinto do lar ou do domicílio em que esteja vivendo a vítima. A norma refere-se ao âmbito da unidade familiar, compreendida esta “como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar” (art. 5º, inciso I); ao âmbito da família, compreendida esta “como comunidade formada por indivíduos que ou se consideram aparentados” (inciso II); e, ainda, a violência praticada em decorrência “de qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida” (inciso III).

 

Verifica-se, portanto, que a lei amplia o espaço de ocorrência da violência domiciliar e familiar, que pode ser praticada em qualquer lugar, desde que motivada por uma relação de afeto ou de convivência familiar entre agressor e mulher-ofendida. Seria o caso de mulher agredida em via pública, pelo ex-marido ou ex-companheiro, por motivo relacionado à convivência anterior entre agressor e vítima.

 

Por outro lado, atos de violência contra a mulher, praticados por agente que não se enquadre numa das três hipóteses previstas no art. 5º e seus incisos, não serão submetidos ao tratamento estabelecido na Lei 11.340/2006, sendo-lhes aplicadas as demais normas da legislação comum.   

 

Nos termos do art. 7º, a prática de violência contra a mulher pode assumir as seguintes formas de manifestação:

1) Física, “entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal” (inciso I). Estariam incluídas aí, condutas caraterizadoras de crimes como o homicídio, aborto, lesão corporal.

2) Psicológica, “entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima” (inciso II).

3) Violência Sexual, “entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força” (inciso III). Este tipo de conduta pode configurar um dos crimes contra a liberdade sexual, definidos no Código Penal.

4) Violência Patrimonial, “entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total” de bens de qualquer natureza pertencentes à ofendida (inciso IV). Podem ser aqui enquadrados casos em que a mulher, por medo, coagida ou induzida a erro, transfere bens ao agressor.

5) Violência Moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria (inciso V). São as hipóteses de crimes contra a honra tipificadas no Código Penal.

 

Aqui, a lei é exaustiva, ao indicar e descrever cinco formas de violência contra a mulher. Desde a violência física, que é a mais comum, à violência moral. Esta última, que não é rara na vida real, ocorre nos casos em que a mulher for caluniada, difamada ou injuriada pelo marido ou companheiro e sempre que a conduta violenta for praticada no espaço de uma relação doméstica ou familiar.

  

3 Assistência à Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar

 

Determina a lei em exame que o “poder público desenvolverá políticas que visem garantir  os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares” (art. 3º, § 1º). Mais uma vez, constata-se a preocupação do texto legal em garantir, às mulheres, os direito humanos que já se acham positivados na Constituição Federal, principalmente, em seu art. 5º e numerosos incisos.

 

Nos termos da lei, a principal Política Pública é a que tem por objetivo “coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher”, devendo ser formulada e colocada em prática por meio de um “conjunto articulado de ações do poder público (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e ações não-governamentais”.

 

A própria lei estabelece, expressamente, as diretrizes  dessa altruística Política Pública, denominadas de “medidas integradas de prevenção à violência, de repressão ao ofensor e de assistência à ofendida”: integração entre os diversos órgãos da administração pública; promoção de campanhas educativas, estudos e pesquisas; celebração de convênios, protocolos; capacitação dos profissionais etc. (art. 8º e incisos).

 

Há, portanto, uma chamada geral para unir as forças das entidades oficiais, particulares e comunitárias em torno dessa verdadeira cruzada contra a violência masculina.

 

.           Na esfera policial, entre outras providências, deverá a autoridade garantir a proteção da mulher, encaminhá-la ao hospital, fornecer-lhe e aos dependentes o transporte que se fizer necessário, acompanhar-lhe ao domicílio para retirada dos pertences (art. 10)       .

 

Diante da precariedade das instalações e equipamentos dos órgãos da Polícia brasileira, é difícil imaginar nossas autoridades policiais com as condições necessárias para cumprir tão avançado programa de assistência e proteção à mulher.

 

            Na esfera judicial, não é menor o rol de medidas “protetivas” urgentes contra o agressor: suspensão do porte de arma;  afastamento do lar; proibição de aproximação e contato com a ofendida, entre outras (art. 22).

 

Há, também, previsão legal de medidas protetivas de urgência que o magistrado poderá ou deverá adotar para a proteção e assistência em favor da mulher vítima de violência doméstica: encaminhamento a programa oficial ou comunitário de atendimento e proteção; separação de corpos e garantia para o retorno ao domicílio; restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor; suspensão de procurações conferidas pela ofendida ao ofensor e outras (arts. 23 e 24).

  

            4. Normas de Procedimento para dos Casos de Violência Doméstica conta a Mulher

 

            A nova lei dedica o seu extenso título IV a estabelecer normas processuais e procedimentais aplicáveis aos casos de violência domiciliar contra a mulher. Cremos que a mais importante é a que propõe a criação de um novo órgão judicial. Dispõe a lei, textualmente:

 

“os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher” (art. 14).

           

            À luz da Política Jurídica, não nos parece acertada a opção da lei em tela de criar mais um órgão jurisdicional com competência especial de processar, julgar e executar as decisões decorrentes da prática de atos de violência doméstica. Primeiro, porque a justiça brasileira já conta com os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e a realidade mostra que estes ainda estão distantes de concretizar a proposta, indiscutivelmente válida, de se praticar uma justiça célere, informal, simples e acessível a todos.

 

A criação de um outro tipo de juizado, destinado apenas ao julgamento de questões resultantes da violência familiar, parece um verdadeiro despropósito, pois não leva em consideração a problemática de nossa realidade judiciária.  A falta de seriedade da proposta legislativa fica evidenciada ao dispor sobre a criação de Juizados de Violência Doméstica  nos Territórios, ignorando que não mais existem esses entes federais.

 

            A verdade é que a norma, ao dispor que os Juizados de Violência Doméstica poderão ser criados, tem conteúdo apenas programático e não determinante. Assim, ao que tudo indica e diante da penúria orçamentária do Poder Judiciário, tais juizados não verão a luz do dia tão cedo. Mesmo nas comarcas dos maiores aglomerados urbanos deste país.

 

            Ainda no plano processual penal e como uma das “medidas protetivas de urgência” contra o autor da violência doméstica e familiar, o novel Estatuto criou mais uma hipótese fática para a decretação da prisão preventiva, acrescentando ao art. 313, do CPP, o inciso IV, com a seguinte redação: “se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.”

 

Agora, dispõe o juiz de mais um instrumento de controle cautelar para esta forma de violência familiar, que somente deve ser utilizado em casos de comprovada urgência e extrema necessidade. Quanto à expressão lei específica, o novo texto legal, refere-se, obviamente, à própria Lei 11.340/2006.  

 

            Fica clara a intenção da nova lei de criar um sistema judicial próprio para aplicação das normas mais severas de controle à violência contra a mulher. Nesse sentido, o art. 17 proíbe a aplicação de penas de prestação pecuniária, especialmente a de cesta básica ou a de substituição de pena “que implique o pagamento isolado de multa”.  E o art. 41 é, ainda, mais incisivo, pois exclui, da esfera processual e procedimental da Lei 9.099/1995, os “crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher”.

             

5. Normas de Natureza Penal

 

No âmbito do Direito Penal, propriamente, o Estatuto contra a Violência Doméstica e Familiar traz três inovações. A primeira ampliou o texto da agravante descrita no art. 61, inciso II, letra f, do Código Penal, para acrescentar a expressão: “ou violência contra a mulher na forma da lei específica”. Parece-nos que a inserção normativa é supérflua, pois a redação existente já permitia agravar a pena do agressor no caso de violência doméstica contra a mulher.

 

Outra inovação, conforme já vimos, é a que ao proíbe a aplicação, ao condenado por violência doméstica, de penas alternativas de natureza patrimonial ou que possam resultar no pagamento de multa ou de cesta básica (art. 17). Trata-se de norma que se insere na contramão da tendência legislativa e judicial de facilitar e estimular a aplicação das penas restritivas de direitos, aí incluídas as de natureza patrimonial, aos casos de infração de menor e de médio potencial ofensivo.

  

A terceira alteração – formalmente mais rigorosa – diz respeito ao crime de lesão corporal leve. Foi acrescentado ao já alterado e mutilado texto do art. 129, do Código Penal, mais um parágrafo, o de número 11, para descrever a causa de aumento de um terço da pena, no caso de violência praticada contra pessoa portadora de deficiência.

 

O texto original desse artigo do CP havia sido objeto de alteração recente, determinada pela Lei Nº 10.886/2004, que lhe acrescentara os parágrafos 9º ( para criar a obscura figura da lesão corporal resultante de violência doméstica) e 10, para criar uma nova causa de aumento de pena.

 

Nem se passaram dois anos e o texto foi novamente alterado para incluir mais uma causa de aumento de pena. No entanto, é preciso ressaltar que a Lei 11.340/2006, ao criar a nova majorante, reduziu o mínimo da pena mínima cominada à lesão corporal praticada com violência doméstica de 06 (seis) para 03 (três) meses de detenção. É evidente que a redução da reprimenda, agora prevista no referido parágrafo 9º, destoa da política mais conservadora e severa adotada pelo novo Estatuto contra a Violência Doméstica e Familiar.

 

É possível que a alteração tenha sido intencional, a fim de corrigir uma impropriedade de técnica legislativa, pois o parágrafo em exame descreve um tipo de lesão corporal, que somente pode ser classificado como de natureza leve, mas havia cominado pena mínima em dobro, se comparada ao mínimo previsto no caput do mesmo artigo.

 

Porém, o mais provável é que tenha havido um equívoco do legislador. Além do fato da redução ser contrária à política conservadora do Estatuto contra a Violência Doméstica e Familiar,  em seu texto, publicado no D.O.U, de 08.08.2006, não consta a observação (NR), indicadora de alteração de texto legislativo anterior. Assim sendo, é possível ter havido um equívoco de redação, que determinou a utilização da pena mínima originalmente cominada no caput do artigo (o que seria de todo correto e conveniente), sem que tenha ocorrido votação para efetivar a justa e necessária correção.

 

            6. Considerações Finais

 

Não há dúvida de que é preciso eliminar a violência doméstica. Quanto a isto, não creio que haja divergência. Mas, a lei certamente vai gerar muita polêmica e ser fonte de merecida crítica. Algumas medidas, restrições e sanções previstas na lei, parecem-nos na contramão do processo históricocultural que envolve e conduz o Direito como instrumento de controle social e solução de conflitos individuais e interpessoais. São normas repressivas, restritivas ou, mesmo, protetivas que, a nosso ver, não são politicamente adequadas, nem se justificam juridicamente. E isto poderá comprometer a desejada efetividade desta nova lei.

 

A começar pela discutível legitimidade de se proibir a aplicação de pena alternativa. Nos casos de violência doméstica de menor ou média gravidade, não há justificativa para essa severa e preconceituosa proibição.

 

No entanto, cremos que o mais grave está no olhar preconceituoso da Lei Maria da Penha, que somente enxerga a violência doméstica e familiar cometida pelo homem. Os autores (ou autoras!) da lei não viram que os tempos mudaram. É evidente que a maior parte da violência doméstica ou familiar (e da violência em geral), ainda é cometida pelo homem. As estatísticas criminais comprovam esta assertiva, indicando que, historicamente,  percentual da violência feminina têm sido mínimo, se comparado ao percentual da violência masculina.

 

Mas, não devemos esquecer que, também, são registrados casos de violência doméstica  praticados pela mulher. E a lei, em sua miopia resultante da adoção da doutrina da proteção unilateral, só protege a mulher, mesmo que esta – com toda a fragilidade e delicadeza própria de seu sexo – eventualmente, possa estar do outro lado da relação de violência. Os homens! que paguem agora o preço de séculos de opressão e de violência contra a mulher.

 

* Professor do Curso de PósGraduação em Ciência Jurídica – CPCJ/UNIVALI. Ex-Procurador Geral de Justiça de SC. Ex-Diretor do CCJ/FURB. Associado à AIDP e ao IBCCrim.