Considerações acerca da citação por carta da pessoa natural no Juizado Especial Cível

 

Marco Aurélio Martins Rocha

Juiz Leigo

 

Muito se tem visto em processos que tramitam sob o procedimento da Lei 9.099/95 alegações dos réus, já na fase de execução, no sentido de que não foram citados no processo de conhecimento.

Em contrapartida, consta nos autos AR que foi dirigido para o endereço do então réu, mas que não foi por ele firmado.

Estaria perfeito o ato judicial?

Foi cumprida a finalidade do mesmo, que é chamar a juízo o réu ou o interessado a fim de se defender?

Diz o enunciado n° 5 do FONAJE (Fórum Permanente dos Coordenadores de Juizados Especiais do Brasil) que A correspondência ou contrafé recebida no endereço da parte é eficaz para efeito de citação, desde que identificado o seu recebedor.

Por outro lado, reza o parágrafo único do artigo 223, do Código de Processo Civil, que a carta [de citação] será registrada para entrega ao citando, exigindo-lhe o carteiro, ao fazer a entrega, que assine o recibo...(grifo nosso).

O inciso I, do artigo 18, da Lei n° 9.099/95 refere que a citação far-se-á por correspondência, com aviso de recebimento em mão própria (grifo nosso).

Entendemos, conforme adiante se verá, não ser caso de ser reconhecida como válida a citação que não é pessoal[1]

 

O ato jurídico citatório e a noção de invalidade 

Sobre os planos da existência, validade e eficácia dos atos jurídicos esclarece Pontes de Miranda[2]: O problema de ser ou não ser, no direito como em todos os ramos de conhecimento, é o problema liminar. Ou algo entrou ou se produziu e, pois, é, no mundo jurídico; ou nele não entrou, nem se produziu dentro dele, e, pois, não é. Enunciados tais têm de ser feitos, a cada momento, no trato da vida jurídica. Às vezes, incidentemente; outras vezes, como conteúdo de petições, de requerimentos, ou em simples comunicações de conhecimento. O ser juridicamente e o não-ser juridicamente separam os acontecimentos em fatos do mundo jurídico e fatos estranhos ao mundo jurídico. Assente que todo fato jurídico provém da incidência da regra jurídica em suporte fáctico suficiente, ser é resultar dessa incidência. Já aqui se caracteriza a distinção primeira, entre o ser suficiente e o ser deficientemente. Para algum ato jurídico ser deficiente, isto é, para que seja deficitário, é preciso que seja.

Sobre os outros planos diz[3]: Para que o ato jurídico possa ‘valer’, é preciso que no mundo jurídico, em que se lhe deu entrada, o tenha por apto a nele atuar e permanecer. É aqui que se lhe vai exigir a ‘eficácia’, quer dizer - o não ser deficiente; porque aqui é que os seus efeitos se terão de irradiar (eficácia). A sua eficácia é a afirmação de que o seu suporte fático não foi deficiente, - satisfez todos os pressupostos de que fala o artigo 82[4]: ‘A validade do ato jurídico requer agente capaz (artigo 145, I), objeto lícito e forma prescrita ou não defesa em lei (arts. 129, 130, 145)’. A regra jurídica seria mais exata se tivesse dito ‘objeto lícito e possível’ e houvesse aludido a pressupostos materiais essenciais, além daqueles dois primeiros (capacidade e objeto). Efficere (ex ficere) dá efficiens e efficax, mas causa efficiens é o que se diz, para que se deixe o nome ‘eficácia’ à irradiação dos efeitos.

E prossegue: O negócio jurídico ou ato jurídico stricto sensu nulo é de suporte fático ‘deficiente’, e - de regra - é negócio jurídico, ou ato jurídico stricto sensu ineficaz; o negócio jurídico, ou o ato jurídico stricto sensu anulável é de suporte fático deficiente, mas o negócio jurídico ou o ato jurídico stricto sensu é eficaz enquanto se não admite, em sentença, que não tenha eficácia. Por isso mesmo, não se pode ligar o conceito de invalidade (nulidade, anulabilidade) ao de eficácia. O ordenamento jurídico somente atribui validade ao ato jurídico que corresponde a suporte fático que é suficiente e eficiente, isto é, suficiente e não-deficiente ou não-deficitário: porque é ‘suficiente’, entra no mundo jurídico como negócio jurídico ou como ato jurídico stricto sensu; se bem que seja deficiente. Quando se trata de saber quais são os negócios jurídicos ou os atos jurídicos stricto sensu, válidos, o que importa é arrolarem-se os ‘pressupostos de validade’, que o mesmo é dizer-se de não-ocorrência de causas de nulidade ou anulabilidade. A questão da eficácia e da ineficácia é estranha ao assunto, se bem que possa acontecer que a classes de invalidade corresponda o ter ou não ter eficácia o ato jurídico que se inclui nelas. Por outro lado, se algum dos elementos do suporte fático é posterior à entrada dele no mundo jurídico, e isso suscita questão do tempo em que se há de verificar se foi satisfeito o pressuposto de validade, veremos que isso de modo nenhum nos permite tratar em termos de pressupostos de eficácia os pressupostos de validade.

Entender que basta que a citação seja dirigida para o endereço do réu, pessoa física, para que seja considerada válida, sem que este tenha efetivo conhecimento do ato processual, afronta as regras processuais, isto porque em nenhum texto legal que diga respeito ao microssistema do Juizado Especial há autorização para que o réu não seja citado pessoalmente, pelo contrário, o inciso I, do artigo 18, da Lei n° 9.099/95 determina que a citação far-se-á por correspondência, com aviso de recebimento em mão própria, assim, é possível afirmar que o recebimento pessoal da carta citatória é condição de validade da citação de pessoa física através dos correios, não bastando a entrega do documento no seu endereço.

Destarte, não há como reconhecer como válida a citação apenas porque dirigida para o endereço do réu, isto porque o ato requer forma prescrita (recorde-se: artigos 223, do Código de Processo Civil e inciso I, do artigo 18, da Lei n° 9.099/95) – a forma da citação é determinada por lei. 

 

Da necessária observância do contraditório e ampla defesa 

Não se justifica, outrossim, sob o argumento da observância dos princípios reguladores do procedimento no Juizado Especial[5], mormente o princípio da celeridade, que não se observem Direitos e Garantais Fundamentais de todas as pessoas que em Juízo, ou administrativamente, litiguem. Referimo-nos ao disposto no artigo 5o, inciso LV, da Constituição Federal, segundo o qual, aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa.

Há diferença entre princípios e regras. As normas dividem-se em princípios e regras. Nesse passo, segundo Alexy[6]: o ponto decisivo para a distinção entre regras e princípios é que os princípios são mandamentos de otimização enquanto as regras têm o caráter de mandamentos definitivos. Como mandamentos de otimização, os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, de acordo com as possibilidades jurídicas e fáticas. Isso significa que podem ser satisfeitos em graus diferentes e que a medida ordenada de sua satisfação depende não só das possibilidades fáticas, mas também das jurídicas, que estão determinadas não só por regras, mas também, essencialmente, pelos princípios opostos. Isso implica que os princípios são suscetíveis de ponderação e, ademais, dela necessitam. A ponderação é a forma de aplicação do direito que caracteriza os princípios. Em contrapartida, as regras são normas que sempre ou bem são satisfeitas ou não o são. Se uma regra é válida e aplicável, então está ordenado fazer exatamente o que ela exige; nada mais e nada menos. Nesse sentido, as regras contêm determinações no âmbito do fática e juridicamente possível. Sua aplicação é uma questão de tudo ou nada. Não são suscetíveis de ponderação e tampouco dela necessitam. A subsunção é para elas a forma característica de aplicação do direito.[7]

Os artigos 223, do Código de Processo Civil e inciso I, do artigo 18, da Lei n° 9.099/95 são, evidentemente, regras. A satisfação do princípio da celeridade (e também da informalidade) depende da possibilidade fática (a citação deve ser pessoal), e também da possibilidade jurídica (respeito aos artigos citados e aos princípios, nesse caso, opostos, da ampla defesa e do contraditório).

Ora, o contraditório e a ampla defesa só serão observados se o réu é devidamente informado acerca da existência do processo, sendo chamado a defender-se e assumindo, obviamente, o ônus da falta de defesa. Esse ônus, todavia, só existirá se houver cumprimento da determinação quanto a efetiva citação. 

 

Da impossibilidade de produção de prova negativa 

Impende ainda salientar que a mantença da forma de citação referida nesse estudo gera para o réu a obrigação de realizar prova negativa, ou seja, deverá provar que aquele local não é [ou não é mais, ou que não teve ciência da citação] seu endereço a fim de desconstituir o ato processual[8], e a inversão do ônus, tratando-se de prova negativa, é impossível, fazendo incidir condenação por simples probabilidade ou presunção, o que é inaceitável. 

 

A economia processual está diretamente vinculada à observância da ampla defesa e contraditório 

Isto porque o processe tem um certo tempo de duração, em normalidade. A não observância de direitos e garantias fundamentais, por obvio, fará com que essa tramitação seja anormal, havendo necessidade de se refazer atos processuais.

O reconhecimento da validade da citação daquela forma, gera, outrossim, evidentes desvantagens para todas as partes envolvidas no processo – o autor, porque já estaria com eventual título executivo a sua disposição e teria que, novamente, litigar em processo de conhecimento; ao réu  porque teria que se defender duas vezes (a primeira numa eventual execução, em embargos, e a segunda no feito de conhecimento) e ao Judiciário, por razões óbvias, salientando entre essas, o descrédito dos jurisdicionados causado pela propalada morosidade para o deslinde dos feitos e não é esse o espírito do Juizado Especial. 

 

Conclusões

 Destarte, considerando o acima explanado, é certo que a citação por carta, dirigida à pessoa física, salvo exceções já referidas, onde o próprio destinatário não firmou o recebimento, não é válida e, portanto, não tem eficácia, mesmo tendo sido dirigida para seu endereço:

a)                                          A lei determina que o ato seja realizado através de uma forma [aviso de recebimento em mão própria].

b)                                         Os princípios da celeridade e da informalidade dependem de possibilidade fática e possibilidade jurídica para sua satisfação.

c)                                         Os princípios são suscetíveis de ponderação e existem princípios, na situação em apreço, opostos e de maior ‘força’ jurídica já que representam direitos e garantias fundamentais.

d)                                         Não pode o réu ser submetido a produzir prova negativa.

e)                                          A não observância dos princípios da ampla defesa e do contraditório só depõe contra todos os demais princípios informadores do procedimento no Juizado Especial, principalmente a economia processual.

f)                                           A citação, portanto, somente dirigida para o endereço do réu, sem que o próprio destinatário a tenha recebido, não se presta ao fim almejado.

  

[1] Salvo, evidentemente, as exceções (artigo 215 do Código de Processo Civil), como a citação por    edital, por exemplo, que, todavia, não é realizada em sede de Juizado Especial.

[2] Tratado de Direito Privado, Parte Geral, Tomo IV, 4.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1983, p. 8.

[3] Ob. cit., p. 3.

[4] Hoje, artigo 104 do Código Civil.

[5] Oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade (artigo 2o da Lei n° 9.099/95).

[6]  Robert Alexy, Sistema jurídico y razón practica, In: Alexy, Robert, El concepto y la validez del derecho y otros ensayos. 2.ed., Bercelona: Gedisa, 1997, p. 159-77 e ainda do mesmo autor Teoria de los derechos fundamentales, Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, capítulo terceiro.

[7] Para aprofundamento é interessante ter em mente o que disse Letizia Gianformaggio (Studi sulla giustificazione giuridica, p. 98) quando afirmou que a diferença entre regra e princípio surge exclusivamente no momento da interpretação-aplicação. Segundo Wilson Steinmetz, citando Paolo Comanducci (Princípios jurídicos e indeterminación Del derecho, p. 91) a qualificação de uma norma jurídica como regra ou como princípio não é anterior (dado ontológico prévio) à interpretação e aplicação, mas posterior. Portanto, a caracterização de uma norma, como regra ou como princípio, depende da ‘configuração da norma’ pela via da interpretação no caso concreto (A vinculação dos particulares a direitos fundamentais, Melhoramentos, p. 205, em nota de rodapé n° 46).

[8] Ovídio A. Batista da Silva (Curso de Processo Civil, vol. I, Fabris Editora, letra a, p. 282) ensina: Em certos casos, o réu poderá, certamente, limitar-se a negar os fatos afirmados contra si pelo autor e esperar que este tente demonstrar sua veracidade. Se o réu limitar-se à simples negativa, sem afirmar a existência de outros fatos por este afirmados, nenhum ônus de prova lhe caberá, se todavia, também ele afirmar fatos tendentes a invalidar os fatos alegados pelo autor, caber-lhe-á o ônus de prová-los.