Direção versus álcool – o que fazer?

 

Autora: Anna Cristina Furquim de Almeida – advogada

 

 

Mesmo após meses da publicação da dita "Lei Seca", a população ainda se questiona sobre a eficácia da referida Lei 11705/2008. As polêmicas geradas pela sua aplicação, acrescidas pelas informações desencontradas dos veículos de comunicação, geraram um sentimento de desconfiança e dúvida que em nada combina com o objetivo buscado pelo ordenamento jurídico, qual seja, a pacificação de conflitos.

 

A grande realidade é que os meios de comunicação noticiaram prisões em flagrante, apreensões de veículos e aplicação de multas, como se se tratassem da mesma coisa. Pois bem. Não o são.

 

A combinação álcool versus direção traz duas conseqüências jurídicas: a primeira é a infração administrativa e a segunda é a tipificação criminal.

 

A Infração administrativa se limita a aplicação dos princípios gerais do direito administrativo, o que nos leva a discutir o poder de polícia referente à aplicação de multas, suspensão do direito de dirigir e apreensão do veículo.

 

Já a tipificação criminal trata a combinação álcool versus direção como delito de trânsito, o que nos leva a discutir a legalidade da prisão em flagrante e a aplicação dos princípios basilares atinentes ao direito penal.

 

Vejamos cada uma delas de forma separada.

 

A Infração administrativa está prevista no artigo 165 do Código de Trânsito Brasileiro, tal qual:

 

"Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência.

Infração - gravíssima; Penalidade - multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses.

Medida Administrativa - retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação".

 

Pela literalidade do dispositivo, ocorreria infração administrativa com qualquer concentração de álcool no sangue. Porém, a legislação estabelece também que o órgão do Poder Executivo federal disciplinará as margens de tolerância para casos específicos. Enquanto não vem tal disciplina, a polícia vem tolerando o índice de 0,2 decigramas.  A quantidade insignificante de álcool no sangue, decorrente do consumo de um bombom com licor, por exemplo, não autorizaria nem sequer a configuração da infração administrativa

 

Dessa forma, acima de 0,2 decigramas, está caracterizada a infração administrativa que tem, como sanções, a aplicação de multa, a suspensão do direito de dirigir e ainda a retenção do veículo até que se apresente outro condutor habilitado e sóbrio.

 

A prova da infração administrativa pode ser feita por qualquer meio: exame de sangue, bafômetro, exame clínico e testemunhas.

 

Nesse caso, uma simples testemunha provando o estado de embriaguez, configuraria a infração e consequentemente a aplicação das sanções legalmente estabelecidas.

 

A segunda consequência advinda da junção direção-álcool é a possibilidade da tipificação de tal conduta como delito de trânsito.

 

Quando se fala em delito de trânsito, remete-se necessariamente ao ramo do direito penal e por conseguinte, à aplicação de seus princípios basilares.

 

Existem dois princípios constitucionais atinentes ao ramo do direito penal que dirimem e norteiam a aplicação das condutas legalmente tipificadas.

 

O primeiro deles é o princípio da taxatividade. Por esse princípio, só é o crime aquilo que a lei, taxativamente, descrever como tal. Nem para mais, nem para menos. Tal princípio vai ao encontro do que falamos nas primeiras linhas desse texto, da pacificação jurídica, segurança nas relações humanas.

 

Assim, o artigo 306, ao cuidar do delito de embriaguez ao volante, estabeleceu o seguinte:

 

"Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência".

Infere-se o seguinte: (1) duas são as condutas incriminadas no art. 306:

a) conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas;

b) conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência;

Outrossim, para a caracterização das duas condutas, é preciso que o autor do delito esteja "sob a influência de álcool", ou seja, esteja dirigindo de forma anormal.

Dessa forma, para que o condutor seja enquadrado como autor do delito, é preciso que tenha uma concentração de álcool acima de 0,6 decigramas por litro de sangue e ainda que o agente dirija o veículo de forma anormal (zig zag, por exemplo).

Levando-se em conta o princípio da taxatividade, é preciso que o limite de 0,6 seja ultrapassado. E aí surge o problema: como provar que o limite de álcool está acima 0,6 decigramas?

Existem quatro formas de se provar a embriaguez: exame de sangue; bafômetro, exame clínico e testemunhal.

Qualquer cidadão pode se negar a fazer o exame de sangue e o bafômetro, uma vez que tais provas necessitam da disposição do corpo humano, o que só pode ocorrer se for com expressa concordância do condutor.

Nem se cogita em supor que tal negativa seja capaz de aplicação da prisão em flagrante por desobediência, já que o direito de dispor do corpo humano e de não produzir prova contra si mesmo é um direito constitucional.

Portanto, restariam apenas duas formas de se provar o delito: o exame clínico e testemunhal. Não se pode negar o exame clínico. O condutor, normalmente, será encaminhado para alguém IML.

Ocorre que por essas duas formas, não há como precisar o nível de decigramas por litro de sangue, o que inviabilizaria a tipificação criminal.

Dessa forma, se o condutor embrigado se negar a fazer o exame de sangue e o bafômetro, somente o exame clínico e testemunhal não serão suficientes para caracterizar a infração e portanto, seguindo o segundo princípio penal acima citado, qual seja, "in dubio pro réu", o condutor seria absolvido por falta de provas.

A conclusão a que se chega é que o legislador brasileiro, na tentativa de evitar e diminuir os acidentes e mortes, criou mais uma vez, brechas na legislação capazes de aliviar a conduta daqueles que nem sequer poderiam ter uma carteira de habilitação. Isso porque, mais do que uma legislação rigorosa, a educação e o respeito à vida do próximo deveriam fazer parte da moral do ser humano, do "ser",  e não direito, do "dever".

 

 *Advogada formada pela Universidade Mackenzie – SP e pós graduada em Direito Público pela Faculdade Damásio Evangelista de Jesus.