DO DIREITO HUMANITÁRIO E O PRINCÍPIO DA HUMANIDADE
Elaborado em 15/02/2007
RAFAEL DAMACENO DE ASSIS
Graduando em Direito pela Faculdade Metropolitana IESB (Instituto de Educação Superior de Brasília.)
Vice-Presidente do Centro Acadêmico Dr. João Tavares de Lima.
Credenciado pela OAB/PR E10.433.
Representante na cidade de Londrina da Associação Brasileira de Advogados ABA.
SUMÁRIO: 1. Introdução aos Direitos Humanos 2. Os direitos humanos na sociedade internacional 3 As definições 4. Características 5. A necessidade da proteção 6. A violação, problema sócio-cultural 7. O Princípio da Humanidade 8. Referências.
1. INTRODUÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS
A proteção dos Direitos Humanos tem merecido cada vez mais as atenções dos Estados, das organizações internacionais e, sobretudo de setores do movimento social que pugnam por uma sociedade mais justa e democrática.
Sem dúvida, a internacionalização dos direitos humanos constitui uma das características marcantes da segunda metade deste século, malgrado as violações sistemáticas e, em alguns casos, institucionais dos direitos da pessoa humana.
Se por um lado esse fenômeno favoreceu a compreensão, a conscientização, a mobilização e a educação em relação à matéria, por outro colocou os direitos humanos como um dos pontos centrais da política internacional, possibilitando o uso da expressão ao sabor da política externa dos Estados Unidos. Ouve-se, assim, falar em “política Carter”, a “política Reagan”, o que torna evidente a anemia semântica de que sofre o termo, na medida em que seu uso pode prestar-se às diversas práticas, até mesmo àquelas encobridoras ou consagradoras das mais graves violações dos direitos da pessoa humana.
Cumpre, pois, analisar o sentido dos direitos humanos e encontrar meios, tanto no interior dos Estados quanto na ordem internacional, incluindo o Terceiro Mundo, para que eles sejam efetivamente respeitados.
Tal análise não pode ter outro ponto de referência senão a realidade social em que se inserem os direitos humanos, pois, caso contrário, poder-se-á confirmar uma visão meramente idealista, desvinculada das aspirações da sociedade contemporânea e cindida entre os direitos formais e as condições materiais indispensáveis ao seu exercício.
No que respeita à ordem internacional, o Terceiro Mundo, em sua grande maioria, se caracteriza como exportador de produtos primários, cujo preço no mercado internacional se deprecia constantemente, e por importador de manufatura, cujo aumento é crescente. A dívida externa constitui outro fator escravizante, conduzindo as elites transnacionalizadas dos países subdesenvolvidos a impor políticas econômicas recessivas que, por si mesmas, constituem graves violações dos Direitos Humanos.
No tocante aos assuntos internos, uma das características marcantes dos países subdesenvolvidos, no plano político, é a existência de ditaduras ou regimes autoritários, que têm como prática o não reconhecimento dos direitos civis e políticos, chegando à tortura, desaparecimento de opositores, pena de morte (oficial ou não), tribunais de exceção, etc.
2. OS DIREITOS HUMANOS NA SOCIEDADE INTERNACIONAL
É somente a partir do término da Segunda Guerra Mundial, com a criação da ONU, que os Direitos Humanos passam a integrar de maneira universal a agenda do Direito Internacional.
A onda nazi-fascista que varreu a Europa mostrou a fragilidade dos dispositivos constitucionais relativos à proteção da pessoa humana.
Da tragédia surge uma forte consciência de que os Direitos Humanos devem ser regulados internacionalmente, como segurança para sua proteção.
Assim, é que a Carta da ONU, estabeleceu como um dos propósitos da Organização promover e estimular o respeito aos Direitos Humanos e às liberdades fundamentais (art.1º, alínea 3ª).
O Conselho Econômico e Social, órgão responsável pela matéria na ONU, apoiado no art.68 da Carta cuidou imediatamente de criar a Comissão de Direitos Humanos.
A primeira grande obra da Comissão foi a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembléia Geral da ONU, em 1948, por 48 votos a favor e 8 abstenções.
As abstenções foram formuladas pela Arábia Saudita, África do Sul, Bielo-Rússia, Ucrânia, Tchecoslováquia, Polônia, União Soviética e Iugoslávia.
No caso dos países socialistas, as abstenções deveram-se ao fato de entenderem que a Declaração deu pouca importância aos direitos econômicos e sociais, privilegiando os direitos civis e políticos, o que evidenciou uma visão distinta dos Direitos Humanos, não circunscrita às liberdades públicas.
A Declaração tem o grande mérito de incorporar os Direitos Humanos ao ordenamento jurídico internacional e, embora não tenha o valor vinculatório de um tratado, constitui, sem dúvida, o desenvolvimento progressivo da Carta da ONU sobre a matéria, podendo-se afirmar que ela se inscreve nos princípios gerais do Direito, nos termos do art.38, par.1º, alínea “c”, do Estatuto da Corte Internacional de Justiça.
Mas na disputa entre a soberania estatal e a proteção internacional dos Direitos Humanos, infelizmente tem prevalecido o poder do Estado, fazendo com que os dispositivos da Declaração careçam de efetividade.
A partir da aprovação de Declaração, a ONU começa a estudar a elaboração de tratado sobre a matéria, suprindo assim, a falta de um texto vinculatório, comprometedor para os Estados.
Em 1966, são aprovados pela Assembléia Geral das Nações Unidas o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Protocolo Facultativo ao último.
Esses textos entraram em vigor em 1976, com o depósito de 35 instrumentos, no que respeita ao Protocolo.
A aprovação dos Pactos constitui o segundo grande momento da história dos Direitos Humanos na ordem internacional. A partir deles a sociedade internacional conta com documentos de caráter universal restritivos à soberania dos Estados, que obrigam o respeito às normas neles contidas.
Com base na Declaração Universal e nos Pactos Internacionais de 1966, além de outros importantes textos, pode-se afirmar que o respeito aos Direitos Humanos não mais se inclui nos assuntos de jurisdição doméstica dos Estados, nos termos do art.2º, alínea 7ª, da Carta da ONU, inscrevendo-se, ainda, como norma imperativa de Direito Internacional, independentemente da ratificação ou adesão dos Estados a tais documentos.
3. AS DEFINIÇÕES
Antes de tudo, é preciso distinguir os Direitos Humanos, vistos como ciência, dos direitos humanos tomados como atributo da pessoa.
Como ciência, definiu-os René Cassin, nestes termos: “um ramo particular das ciências sociais, que tem por objeto estudar as relações entre os homens em função da dignidade humana, determinando os direitos e as faculdades, cujo conjunto é necessário ao desenvolvimento da personalidade de cada ser humano”.9 Como ciência, seu objetivo é buscar o conceito jurídico dos Direitos Humanos e analisar-lhes a autonomia, estabelecer o método de seu conhecimento. Estudar-lhes a teoria e a hierarquia das fontes, ocupar-se das garantias políticas e judiciais (nacionais e internacionais) do seu exercício, estudar-lhes o desenvolvimento histórico, cuidar do estudo comparado desses mesmos Direitos e fazer a análise sistemática de cada um deles.
Para Morris Abraham, da Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas, “são aqueles direitos fundamentais, aos quais todo homem deve ter acesso, em virtude puramente da sua qualidade de ser humano e que, portanto, toda sociedade, que pretenda-se uma sociedade autenticamente humana, deve assegurar aos seus membros”.10
Para J. Castán Tobeñas, “são aqueles direitos fundamentais da pessoa humana – considerada tanto no seu aspecto individual como comunitário – que lhe correspondem em razão de sua própria natureza (de essência ao mesmo tempo corpórea, espiritual e social) e que devem ser reconhecidos e respeitados por todo Poder ou autoridade e toda norma jurídica positiva, cedendo, não obstante, em seu exercício, ante as exigências do bem comum”.11
Essas definições conferem ao conceito de direitos humanos fundamentais um conteúdo fortemente jusnaturalista, o que, aliás, se ajusta à noção constante de Declaração Universal de Direitos Humanos. Os defensores do positivismo jurídico não subscreverão essas definições, uma vez que, ao seu ver, somente o direito –norma, elaborado, reconhecido e assegurado pelo Estado pode ser considerado como tal. Para o pensamento juris-humanista dominante, porém, é dever do Estado reconhecer os direitos humanos como inerentes à pessoa humana e assegurar-lhes o pleno gozo a todas as pessoas, sem qualquer tipo de discriminação, como reiteradamente vem sendo afirmado nos instrumentos internacionais desde a Carta das Nações Unidas.
4. CARACTERÍSTICAS
Os direitos humanos constituem, seja como um bem da pessoa, seja como ciência ou corpo de normas, algo distinto do que se conhece sob a denominação de direito natural, direito subjetivo e liberdades públicas. Quem muito bem explicou as características dos Direitos Humanos foi o jurista chileno Hübner Gallo.12 No seu entender, esses direitos caracterizam-se como: inatos, ou congênitos, universais, absolutos, necessários, inalienáveis, invioláveis, imprescritíveis.
Porque o homem nasce com eles, como atributos inerentes a todo ser humano, diferentemente do que ocorre com outros direitos – que são adquiridos no decorrer da existência, mediante outorga do Estado, ou ajustes interpessoais, ou prática de atos autorizados pela lei -, são eles inatos.
Porque se estendem a todos os seres humanos, em todo tempo e lugar, sem discriminação qualquer e em razão da unidade essencial da natureza do homem, seja qual for sua condição histórica ou geográfica, sua raça, seu sexo, sua idade, ou situação concreta na sociedade, são eles universais.
Porque seu acatamento e respeito se impõem a toda pessoa natural ou jurídica de direito público ou privado, bem como à sociedade inteira, são eles absolutos.
Porque não derivam de uma eventualidade, mas exprimem um imperativo da própria natureza da pessoa humana, são eles necessários.
Porque pertencem de modo indissolúvel à essência mesma do homem, sem que possa dele separar-se, não podem ser transferidos a outrem, a qualquer título, diferentemente do que acontece com os direitos que podem ser objeto de transação jurídica, são inalienáveis.
Porque ninguém, nem mesmo a autoridade legalmente constituída, pode legitimamente atentar contra eles, sem prejuízo das justas limitações a que estejam sujeitos em favor do bem comum, são invioláveis.
Porque não estão sujeitos a nenhum prazo legal para serem exercidos porque são inalienáveis e necessários e são exigíveis a qualquer tempo, são imprescritíveis.
Tudo isso, porém, não impede que alguns dos direitos humanos tenham o seu exercício transitoriamente suspenso, em determinadas circunstâncias, ou sofram algumas limitações, tendo em vista os interesses da segurança pública – como direito à liberdade no caso dos delinqüentes, ou que tenham o seu gozo sujeito a certa disciplina normativa em benefício da ordem social – como direito à manifestação do pensamento. “Tudo porque a todo direito corresponde um dever”, como ensina o velho e sábio brocardo.
5. A NECESSIDADE DA PROTEÇÃO
Não basta declarar um direito, proclamá-lo, inseri-lo num corpo normativo – uma Constituição, uma Lei. É necessários dar-lhe a proteção que o torne eficaz e capaz de cumprir a sua finalidade. Diz-se – “todos são iguais perante a lei” -, proclama-se à igualdade de todas as pessoas, sem qualquer discriminação, diante de um sistema jurídico destinado a reger determinada sociedade humana. Se isso é dito num instrumento jurídico internacional, afirma-se a igualdade de todas as pessoas do mundo perante as normas que regem a sociedade humana como um todo, sem nenhuma distinção. Mas é preciso haver instrumentos e mecanismos que assegurem a todos, em toda parte, o uso e gozo dessa liberdade. Esses instrumentos são as normas jurídicas disciplinadoras do uso de cada direito, sejam costumeiras, sejam legais. Os mecanismos que asseguram o cumprimento dessas normas são aparato administrativo e judicial, que o Estado põe a serviço da eficácia dos direitos que lhe cabe assegurar e proteger. É sabido que o direito tem como elemento intrínseco à coerção, que é o poder “de conter alguém no seu dever, de impedir que se aparte dele” (Moraes). Vem do latim coercio, verbo de várias significações, entre as quais a de obrigar (Saraiva). Mas, essa coercibilidade nem sempre se materializa sem o elemento coação, extrínseco ao direito, aplicado pelo Estado, por meio de seus mecanismos, para tornar eficaz a norma. Nisso consiste a proteção. Mas, nos tempos atuais, quando o Estado falha na sua função protetora dos direitos humanos, a comunidade internacional intervém, com apoio nas convenções e pactos internacionais, para exercer essa proteção. É que os direitos humanos, por força desses pactos e convenções, deixaram de ser matéria da competência exclusiva do Estado e passaram a ser, também, de órgãos internacionais, ou, noutros termos, deixaram de ser matéria exclusiva de direito interno e passaram a ser, também, de direito internacional. Por isso, a sociedade internacional criou seus instrumentos e mecanismos para a proteção dos direitos humanos.
6. A VIOLAÇÃO, PROBLEMA SÓCIO-CULTURAL.
Notável é a influência que tem a cultura na recepção dos direitos humanos. Há costumes milenares que se opõem a alguns conceitos e disposições contidos nos instrumentos internacionais e são levados ao direito interno dos diferentes Estados por esses mesmos instrumentos. Entre a aprovação dos representantes do Estado, presumidamente do povo, nas conferências internacionais e a aceitação pelo comum das pessoas nos limites de cada país, costuma abrir-se significativa distância. Não só os costumes milenares, já referidos, dificultam a aceitação dos direitos humanos em alguns países; causam-na também, religiões e ideologias já enraizadas no espírito das comunidades. Demais disso, não se deve esquecer que a ignorância, decorrente do ensino e da educação deficientes, contribui fortemente para a recusa dos direitos humanos. Essa recusa importará inevitavelmente na violação pelo comum das pessoas. Não é sem razão que a Declaração Universal considerou, no seu Preâmbulo, que “o desconhecimento e o menosprezo dos direitos humanos originaram atos de barbárie ultrajantes para a consciência da humanidade”.Algumas religiões – como setores radicais do islamismo – opõem-se a certos preceitos dos direitos humanos relacionados com a mulher, a criança e o adolescente. Ideologias políticas totalitárias – como o comunismo e o fascismo – resistem às regras pertinentes à liberdade de manifestação do pensamento, de crença e culto, de organização política e outras. Disso decorrem as violações tanto as cometidas por indivíduos isoladamente, como por grupos de indivíduos, associações e órgãos do próprio Estado. Uma conjuntura política, ou religiosa, pode levar a graves violações, como ocorreu na Alemanha nazista, na Rússia soviética e noutros países de semelhantes regimes políticos, ou naqueles em que se instalaram ditaduras pessoais sem fundamento ideológico ou religioso. Os conflitos religiosos no Oriente Médio têm sido causa de terríveis violações dos direitos humanos. Eliminar esses fatores de violação é uma tarefa muitas vezes difícil e demorada, que somente mediante hábil, decidida e constante ação internacional poderá realizar-se.
7. O PRINCÍPIO DA HUMANIDADE
Há um princípio geral de racionalidade que deriva da Constituição ou do princípio republicano, que exige certa vinculação entitativa entre o delito e sua conseqüência jurídica, mas este princípio vincula-se intimamente também como princípio de humanidade, que se deduz da proscrição da pena de morte, perpétua, de banimento, trabalhos forçados e penas cruéis (art.5º, XLVII, da Constituição Federal). Justamente o antônimo da “pena cruel” é a “pena racional” (e não a pena “doce” é claro). Do princípio de humanidade deduz-se a proscrição das penas cruéis e de qualquer pena que desconsidere o homem como pessoa. O parágrafo 2º do artigo 5º da CA de Direitos Humanos estabelece que ninguém deve ser submetido a torturas nem a penas ou tratamento cruéis, desumanos ou degradantes. A essa conseqüência contribui também o princípio da soberania popular, posto que este pressupõe, necessariamente, que cada homem é um ser dotado de autonomia ética pelo mero fato de ser homem, ou seja, que por esta circunstância é capaz de escolher entre o bem e o mal e de decidir a respeito.
O princípio de humanidade é o que dita a inconstitucionalidade de qualquer pena ou conseqüência do delito que crie um impedimento físico permanente (morte, amputação, castração ou esterilização, intervenção neurológica, etc.), como também qualquer conseqüência jurídica indelével do delito.
Entende-se, portanto, que este princípio tem vigência absoluta e que não deve ser violado nos casos concretos, isto é, que deve reger tanto a ação legislativa – o geral – como a ação judicial – particular - o que indicaria que o juiz deve ter o cuidado de não violá-lo.
8. REFERÊNCIAS
ANGELO, Milton. Direitos Humanos. São Paulo: LED Editora de Direito, 1998.
ARAGÃO, Selma Regina. Direitos Humanos na Ordem Mundial – 1a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 1948. Consultado na Internet em 25 de Janeiro de 2007. http://www.unhchr.ch/udhr/lang/por.htm
DIREITOS HUMANOS: Declaração de Direitos e Garantias – 2a ed. – Brasília: Senado Federal Subsecretaria de Edições Técnicas, 1996.
DIREITOS HUMANOS: Um debate necessário – vol.2. São Paulo: Instituto Interamericano de Direitos Humanos - Editora Brasiliense, 1989.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves – Direitos Humanos Fundamentais – 2a ed. São Paulo: Saraiva, 1998.
LEAL, Rogério Gesta. Perspectivas Hermenêuticas dos Direitos Humanos e Fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000
OLIVEIRA, Almir de. Curso de Direitos Humanos. 1a ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.