ERRO
MÉDICO E FATO DA COISA
Autor:
Neri Tadeu Camara Souza
Advogado e
Médico
Texto
concluído em 2005
A
responsabilização civil do médico, quando no atendimento
aos pacientes, inclui a responsabilidade por lesões –
danos – que sejam causados pelas “coisas” que utilizar,
ou seja, aparelhos, equipamentos, substâncias e um
grande número de materiais com efeitos terapêuticos os
mais diversos. Tudo isto, merece uma análise de como os
Tribunais encaram a necessidade dos médicos repararem,
no terreno da responsabilidade civil, os danos causados
nestas situações.
O artigo
938 do Código Civil brasileiro é o utilizado na
subsunção do fato à norma pelos julgadores em caso de
responsabilidade civil pelo fato da coisa, em situações
de erro médico, e ele nos diz, verbis: “Aquele
que habitar prédio, ou parte dele, responde pelo dano
proveniente das coisas que dele caírem ou forem lançadas
em lugar indevido.” Trata-se, pois, de um caso de
interpretação extensiva da norma jurídica pelo julgador,
que extende aos equipamentos, instrumentos e outros
materiais utilizados pelo médico no atendimento do
paciente o mesmo tratamento dado pela lei às coisas que
“caírem ou forem lançadas” de um prédio. Além dos
equipamentos, também os produtos utilizados pelo médico,
se causarem dano ao paciente, implicam na
responsabilização deste pelos prejuizos que houverem,
como nos diz José Carlos Maldonado de Carvalho: “A
responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço, em
suma, está vinculada ao conceito de acidente de consumo,
ou seja, toda vez que ocorrer acidente causado em razão
de um serviço ou de um produto médico defeituoso.” (IATROGENIA
E ERRO MÉDICO – sob o Enfoque da Responsabilidade Civil.
Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2005, p.66).
Como se vê
também no escólio de Hildegard Taggesell Giostri: “O
uso de bisturis, tesouras, pinças, aparelhos de
hemodiálise, raios laser, raios X, aparelhos
eletro-eletrônicos, bombas de cobalto, instrumentos
ortopédicos e cirúrgicos, em suma, qualquer objeto que
possa ser classificado como aparelho médico-hospitalar
pode gerar a responsabilidade para o médico, ou para o
hospital.” (RESPONSABILIDADE MÉDICA – As obrigações
de meio e de resultado: avaliação, uso e adequação.
Pensamento Jurídico – Vol. V, Curitiba: Juruá Editora,
2001, p.201).
O médico
deve saber operar corretamente a aparelhagem que
utilizar, pois qualquer erro no manuseio de algum
equipamento, que cause dano ao paciente, implicará na
sua responsabilização pelo prejuizo que advir do
incorreto manuseio da aparelhagem que empregar. Até uma
equivocada opção por um equipamento no tratamento do
paciente, se disto resultar dano a este, redundará em
responsabilização do médico. O objeto, ou produto, na
sua utilização no paciente, integra-se ao serviço
executado pelo médico - é um prolongamento das suas
mãos. Sobre isso transcreve-se o que pensa Rui Stoco:
“(..) presumindo-se, assim, a responsabilidade do
guardião ou dono da coisa pelos danos que ela venha
causar a terceiros.” (RESPONSABILIDADE CIVIL E SUA
INTERPRETAÇÃO JURISPRUDENCIAL. 4. ed., São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 1999, p.485). No mesmo
sentido, vai o ensinamento de José de Aguiar Dias: “O
dever jurídico de cuidar das coisas que usamos se funda
em superiores razões de política social, que induzem,
por um ou outro fundamento, à presunção da causalidade
aludida, e em conseqüência, à responsabilidade de quem
se convencionou chamar o guardião da coisa, para
significar o encarregado dos riscos dela decorrentes.’’
(DA RESPONSABILIDADE CIVIL. v.2, 10. ed., Rio de
Janeiro: Forense, 1995, p.398). Para complementar,
veja-se o que nos diz Regina Beatriz Torres da Silva: “A
responsabilidade por fato da coisa é também indireta e
funda-se no princípio da guarda, de poder efetivo sobre
a coisa no momento do evento. Desse modo a determinação
do guardião é fundamental nessa espécie de
responsabilidade civil.” (in: NOVO CÓDIGO
CIVIL COMENTADO. Ricardo Fiuza - coordenador -, 4. ed.,
São Paulo: Saraiva, 2005, p. 849).
O profissional da
Medicina tem que ser diligente, prudente e perito ao
utilizar, na sua atividade, instrumentos (equipamentos,
aparelhos, substâncias, materiais). O uso destes tem que
ser correto e a conservação (manutenção) dos mesmos deve
ser realizada adequadamente. Como se depreende do
escólio de Jerônimo Romanello Neto: “O ente (médico,
hospital, clínica,etc.) tem um dever de prudência e de
diligência quando utiliza instrumento ou produto, pelo
que deverá ter os maiores cuidados na escolha,
manutenção e conservação deles.” (RESPONSABILIDADE
CIVIL DOS MÉDICOS, São Paulo: Editora Jurídica
Brasileira, 1998, p.120). Nos diz ainda, o mesmo autor:
“ (...) ao alegar que o problema foi do aparelho cujo
defeito desconhecia, ou, ainda, não podia prever,
entramos no campo da responsabilidade do fabricante.”
(op.cit., p.121), portanto se o equipamento
apresentar deficiência que seja desconhecida do médico,
ou mesmo não previsível, deixa de ser responsabilidade
do médico o dano porventura sofrido pelo paciente. Esta
responsabilidade pelo prejuízo causado ao paciente passa
a ser do fabricante do aparelho. Como comanda o artigo
12 do Código de Defesa do Consumidor – CDC, que, em seu
caput, explicita: “O fabricante, o produtor, o
construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador
respondem, independentemente da existência de culpa,
pela reparação dos danos causados aos consumidores por
defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção,
montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou
acondicionamento de seus produtos, bem como por
informações insuficientes ou inadequadas sobre sua
utilização e riscos.”, artigo este situado no
Capítulo IV, Seção II, DA RESPONSABILIDADE PELO FATO DO
PRODUTO (no caso: coisa) E DO SERVIÇO, que deixa
bem clara a responsabilidade legal objetiva do
fabricante de um aparelho que apresente defeito e, em
virtude deste, ao ser utilizado em um ato médico, cause
dano a um paciente.
Há pois duas
situações, como bem nos diz Hildegard Taggesell Giostri:
“Em nosso entender, e no que diz respeito à
responsabilidade pelo fato das coisas, há que serem
analisadas duas posibilidades distintas da ocorrência
desta responsabilidade:
a) O dano é causado pelo médico, por
intermédio do aparelho;
b) O dano é causado pelo próprio
aparelho, independentemente do profissional.” (op.
cit, p.204).
Naqueles casos em
que o responsável pelo defeito no aparelho for o
fabricante e o médico vier a ser, em juízo,
responsabilizado pelos danos causados, pode este
ressarcir-se junto ao fabricante do valor no qual foi
condenado frente ao paciente, obedecendo ao comando
legal do artigo 934 do nosso Código Civil, que diz: “Aquele
que ressarcir o dano causado por outrem pode reaver o
que houver pago daquele por quem pagou, salvo se o
causador do dano for descendente seu, absoluta ou
relativamente incapaz.”. O artigo 13, do Código de
Defesa do Consumidor – CDC, em seu Parágrafo Único, vai
no mesmo sentido dispondo, verbis: “Aquele que
efetivar o pagamento ao prejudicado poderá exercer o
direito de regresso contra os demais responsáveis,
segundo sua participação na causação do evento danoso.”.
Assim, um eventual defeito de fabricação terá, caso
causar dano ao paciente, como responsável último, pelos
danos porventura sofridos por este, o fabricante (ou
mesmo o importador, em se tratando de aparelho
estrangeiro). Cabe ao médico, caso venha a ser
responsabilizado em juízo, por prejuízos ao paciente,
numa situação assim caracterizada, impetrar uma ação de
regresso contra o fabricante (ou importador) do aparelho
defeituoso que lesou o paciente, para ser ressarcido do
valor pecuniário com que teve que indenizar o paciente.
Um medicamento, ou qualquer
substância prescrita ou manuseada com finalidade
similar, se utilizado pelo médico deverá ser
corretamente ministrada ao paciente, observando o
profissional as características do princípio ativo
desta. Isto implica em seguir as orientações científicas
no tocante às dosagens que devem ser prescritas, ou
administradas ao paciente. Isto inclui cuidados e
orientações quanto às reações colaterais – adversas –
bem como contraindicações que existam. A orientação ao
paciente, de parte do médico não pode faltar como
adverte Maria Beatriz Cardoso Ferreira: “Hoje, nos
estados Unidos, reações adversas a medicamentos são
consideradas a quarta causa de morte, só sendo superadas
por câncer, cardiopatia isquêmica e acidente vascular
cerebral. No entanto habitualmente o que se vê é a
valorização dos efeitos terapêuticos e a ausência de
menção dos efeitos indesejáveis ou sua apresentação de
uma forma discreta.
Embora o conhecimento dos riscos
a que está exposto seja um direito do paciente, os
profissionais algumas vezes os minimizam.” (NEM
SEMPRE O MEDICAMENTO MAIS NOVO É O MELHOR - Entrevista,
Boletim Informativo, ANVISA – Agência Nacional de
Vigilância Sanitária, nº54, abril, 2005, p.6). Deve
haver, isso sim, orientação – esclarecimento – e
vigilância por parte do médico no que se refere ao
aparecimento de efeitos indesejáveis dos fármacos, e
substâncias, utilizadas nos mais diversos tratamentos
realizados nos pacientes. Se necessário, deve o médico
corrigir as doses das substâncias empregadas, durante o
tratamento, e, também, por imperativo, adaptá-las às
características diferenciadas de cada organismo humano.
Em certas situações, a interrupção da medicação deve ser
a medida a ser tomada pelo médico no momento adequado.
Com estes cuidados no manejo da terapêutica ministrada
ao seu paciente o médico não será responsabilizado por
danos ao paciente em virtude dos medicamentos –
substâncias –, pois certamente estes danos serão devidos
às peculiares ações dos fármacos. Mais provavelmente,
pois, serão conseqüência das ações dos medicamentos, que
ficam no terreno da responsabilidade civil exclusiva dos
laboratórios farmacêuticos fabricantes dos mesmos. No
mesmo sentido vai o escólio de Jurandir Sebastião: “A
regra é a mesma em relação aos produtos farmacêuticos,
relativamente à Medicina e, também, às normas de
proteção ao consumidor (qualidade do produto).
Tratando-se de marca-passo, pino de platina, expansor de
pele da mama, prótese dentária, etc., o médico ou o
dentista devem observar o recomendação do fabricante e
ajustá-la ao paciente (precaução de alergia, rejeição,
etc.). Percorrido este caminho satisfatoriamente,
eventual resultado danoso ao paciente deverá ser
debitado apenas ao fabricante. Caso contrário, a
responsabilidade será de ambos ou tão–só do médico se
este descurou da diligência prévia de ajustamento ou
pronta mudança, no caso de resultado inverso e
inesperado no paciente.” (RESPONSABILIDADE MÉDICA
CIVIL, CRIMINAL E ÉTICA. 3.ed.,
Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2003, p.197).
Assim também pensa João Monteiro de Castro: “Assim
sendo, considerando-se ser o médico um profissional
liberal (portanto respondendo mediante apuração de
culpa) e que, paralelamente, existe por força de lei a
responsabilidade objetiva do fornecedor de produtos,
fica afastada a responsabilidade solidária deste, que
usa um produto defeituoso.
A situação será bem diversa se o
profissional agir com culpa quanto a instruir e informar
o paciente sobre o uso ou dosagem do produto, o que
configurará falha na prestação do serviço médico e
atrairá a responsabilização do médico.”
(RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO. São Paulo: Editora
Método, 2005, p.175). Ainda, na visão do mesmo autor: “Assim
não responderá o médico se, sem culpa profissional,
danos advierem ao paciente, em decorrência de aplicação
de produto defeituoso, eis que, escolhida com prudência
e diligência a terapêutica a ser seguida, deve-se, tanto
como se aceita a fatalidade da doença e a possibilidade
de sua má evolução, conformar-se com o risco do
tratamento.
Por outro lado, em existente
culpa do médico e exposição do paciente aos riscos de
produto defeituoso, responderá ele solidariamente pelos
danos patrimoniais e extrapatrimoniais experimentados,
advindos da má escolha.” (op.
cit., p.176).
Pode a atividade do médico
associar-se, ou assemelhar-se, à daquele que fornece o
produto. Isto pode trazer implicações para ele, sob a
ótica do Código de Defesa do Consumidor, como se vê no
escólio de Oscar Prux: “Não se pode ignorar a
freqüência com que muitos profissionais liberais, a par
de fornecerem seus serviços, também atuam como
autênticos comerciantes (e até como fabricantes ou
importadores), vendendo ao consumidor produtos ligados
ao serviço prestado. Assim, transportando para o campo
prático, podemos exemplificar da seguinte maneira: o
médico que em tratamento de obesidade, depois de
prescrever o tratamento, também vender ao consumidor o
remédio por ele receitado, deverá responder tanto pela
qualidade de seu serviço, quanto pela qualidade do
produto que vendeu, sendo que, nesse aspecto, sua
responsabilização deverá acontecer tal qual a de
qualquer comerciante. E se o remédio for de sua
fabricação ou importação, também responderá na condição
própria de fabricante ou importador. Assim, se quanto à
responsabilização referente a seu serviço está amparado
pela exceção do § 4º, do art. 14 do Código de Defesa do
Consumidor, o mesmo não acontece quanto à sua genuína
atuação como fabricante ou importador, ou mesmo apenas
vendedor. Quanto a essas últimas, ele responderá tal
qual os demais fornecedores, que nessa atividade, têm em
comum com ele, o mesmo intuito de ganho, ou seja,
aplicando-se a regra geral da responsabilidade objetiva.
No tocante à fabricação e venda do remédio, não existe
diferença a justificar ao médico responder de forma
privilegiada em comparação com o fabricante e o
comerciante. Muito ao contrário, há que se ter um rigor
ainda maior, pois ao receitar e vender remédio de sua
fabricação, o profissional aproveita-se no fornecimento,
de todo o peso de sua autoridade de especialista no
assunto, deixando o consumidor praticamente à sua
mercê”. (RESPONSABILIDADE CIVIL DO PROFISSIONAL
LIBERAL NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.
Belo Horizonte: Del Rey Editora,
1998, p.227-228). Se o médico praticar ato de
comércio, agir como comerciante, até mesmo importador,
obtendo lucro com a venda de produtos relacionados com o
serviço que prestar, a sua responsabilização, em caso de
dano a um paciente, será objetiva nos termos do
caput, do artigo 12, do CDC (em vez do parágrafo
4°, do artigo 14, do mesmo CDC, verbis: “A
responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será
apurada mediante a verificação de culpa”), ou seja,
o médico será considerado um fornecedor.
Portanto, o médico pode ser
responsabilizado civilmente, nos Tribunais, se agir
culposamente na utilização da “coisa” em um tratamento
médico. Também será, o médico, se agir com culpa,
responsabilizado, neste caso solidariamente com o
fabricante ou importador, mesmo que aquilo que utilizar
tenha um defeito de fabricação. Se, o médico, agir como
um comerciante – fornecedor –, será responsabilizado nos
Tribunais nos termos da responsabilidade objetiva.
NERI TADEU CAMARA
SOUZA
ADVOGADO E
MÉDICO – DIREITO MÉDICO
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Telefone:
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Autor do livro:
RESPONSABILIDADE CIVIL E PENAL DO MÉDICO – 2003
– LZN Editora – Campinas – SP |