João José Leal*
l.
Introdução:
O Pacto com o Direito Penal da Severidade
1.1
LCH e Rigor Punitivo para os Crimes contra a Liberdade Sexual
Dos
crimes contra os costumes, definidos no Título VI do CP, a Lei nº 8.072/90
(Lei dos Crimes Hediondos – LCH) selecionou
os dois mais graves para atribuir-lhes o rótulo legal da hediondez.
Em conseqüência, o estupro (art. 213) e o atentado violento ao pudor
(art. 214), tentados ou consumados, são as duas únicas infrações contra os
costumes que integram o rol sinistro dos crimes hediondos (art. 1º, incisos V e
VI da LCH).
Esses
dois crimes tiveram suas penas mínimas aumentadas, respectivamente, de três e
dois para seis anos e as máximas de oito e sete para dez anos de reclusão
(art. 6o da LCH). Com a
LCH, igualou-se a reprimenda cominada ao estupro e ao atentado violento ao
pudor, o que não seria tão grave, pois são crimes da mesma espécie e,
principalmente, porque não se pode afirmar que o estupro seja necessariamente
mais grave que o atentado violento ao pudor e vice-versa. A experiência mostra
que as circunstâncias presentes em cada um destes crimes é que darão a
medida certa para se aferir, de forma casuística, qual deles é o mais grave.
Por isso, a igualdade de reprimenda teria sido uma medida razoável e
compreensível se a pena mínima do crime de estupro tivesse permanecido próxima
ao patamar de três anos de reclusão estabelecido pelo legislador de 1940.
Não
se pode concordar é com a solução adotada pela LCH, que exagerou na exasperação
da pena. É preciso reconhecer que, no tocante ao atentado
violento ao pudor, a elevação da reprimenda mínima de dois para seis anos
representou um despropositado salto em direção ao direito penal da
severidade. Isto é profundamente lamentável.
À
luz da concepção punitiva contemporânea , seria um absurdo admitir que a
conduta de apalpar ou beijar alguém à força,[1]
ou a mera contemplação lasciva, após o agente ter cortado o vestido da vítima
que dormia,[2]
entendidas pela jurisprudência de alguns anos atrás como caracterizadoras do
tipo penal descrito no art. 214 do CP, merecem a pena mínima de seis anos de
reclusão, a ser cumprida em regime fechado.
Mantido
este entendimento jurisprudencial para as hipóteses hediondas em análise, a
reprimenda mínima a ser obrigatoriamente aplicada revela-se um verdadeiro
disparate, se comparada com a punição prevista para outros crimes também
graves, definidos no CP ou em leis especiais. Compare-se, por exemplo, com a
pena mínima de um ano de detenção cominada para o homicídio culposo, mesmo
quando praticado mediante gravíssima imprudência e geradora de graves conseqüências
sociais; ou com a pena mínima de seis anos de reclusão, prevista para o
homicídio doloso simples.
1.2
- O Equívoco de um Conceito Legal de Crime Hediondo
De
qualquer forma devemos admitir que tanto o estupro quanto o atentado violento ao
pudor são crimes graves, cujo cometimento, em regra, pode suscitar um forte
sentimento de repulsa. Por isso, o juízo de censura será, também, com freqüência,
acentuado em relação ao autor de tais condutas contra liberdade sexual.
No entanto, há casos de crime de estupro e, principalmente, de atentado
violento ao pudor em que a gravidade da conduta não se apresentará de forma tão
acentuada e o rótulo da hediondez poderá se revelar politicamente desnecessário
e indevido; eticamente indevido e injusto; juridicamente ilógico. Isto se
admitirmos a validade do conceito legal de crime hediondo.
Aliás,
já escrevemos anteriormente que o legislador de 1990, cometeu
sério equívoco ao destacar alguns tipos penais mais graves, para
classificá-los como infrações obrigatória e necessariamente hediondas.
É que o caráter de hediondez desses delitos não pode ser estabelecido a
priori, como uma regra absoluta. Ao contrário, o caráter de maior
gravidade de uma dessas condutas rotuladas de hediondas, decorre principalmente
de certas circunstâncias ou conseqüências do crime em concreto. Constata-se,
portanto, que o legislador lançou mão de um critério puramente formal e
utilizou um procedimento de mera colagem. Criou, assim, uma presunção compulsória
do caráter profundamente respulsivo do ato incriminado: de forma discricionária
e apriorística, decidiu o legislador marcar certas condutas criminosas com o rótulo
da hediondez absolutamente obrigatória. Entendemos que este conceito
meramente formal de crime hediondo contraria, não somente a lógica jurídica,
mas também a própria natureza das coisas.[3]
Examinaremos,
neste artigo, o desencontro entre a hermenêutica doutrinária e a
jurisprudencial acerca de um ponto polêmico da LCH: afinal, o estupro e o
atentado violento ao pudor, nas suas formas simples, são crimes hediondos? Ou
seja, encontram-se estas duas infrações contra a liberdade sexual, em suas
formas básicas, tipificadas nos arts. 213, caput, e 214, caput,
do CP, marcadas pelo rótulo da hediondez, de conformidade com o disposto nos
incisos V e VI, do art. 1º, da LCH?
A
questão é realmente polêmica e tem dividido tanto a doutrina quanto a
jurisprudência e as divergências apresentam-se como uma verdadeira fratura
exposta no campo da hermenêutica jurídica.
A
doutrina tem posição divergente. Uma corrente entende que, tanto as formas básicas
quanto as qualificadas destes dois crimes contra os costumes, enquadram-se nas
hipóteses descritas nos incisos V e VI do art. 1º, da LCH: estão, portanto,
etiquetadas como crimes hediondos. Sem maior preocupação com o processo hermenêutico
que deve buscar o verdadeiro sentido da norma, parte da doutrina tem afirmado,
laconicamente, que esses dispositivos referem-se a ambas as hipóteses de
estupro e de atentado violento ao pudor.[4]
Outra
parte da doutrina, no entanto, entende que somente as formas qualificadas do
estupro e do atentado violento ao pudor podem ser consideradas
crimes hediondos. Alberto Silva Franco, em excelente comentário ao tipo
penal de estupro, escreve que a redação
dada aos dois incisos em exame, ao utilizar a expressão estupro e sua
combinação com o art. 223, caput, e parágrafo único, tem o mesmo
significado ou o mesmo sentido da expressão combinado com, de uso
corrente na doutrina, na jurisprudência e na própria lei. E argumenta
textualmente: “O fato mesmo de o legislador não ter aposto o termo caput ao
número dos artigos 213 e 214, (...) e de não ter acrescido ao nomen iuris a
expressão e na forma qualificada, (...) denota que não está
relacionando com o tipo básico (estupro e atentado violento ao pudor) as formas
qualificadas do art. 223 e de seu parágrafo único), como se fossem figuras
somadas, mas, ao contrário, está integrando a redação do tipo básico com as
orações subordinadas que compõem o caput e o parágrafo único do art.
223”.[5]
Não
se pode negar que a redação dada aos incisos V e VI do art. 1º da LCH não é
da melhor categoria, em termos de técnica legislativa. Os referidos
dispositivos estão assim redigidos: “V – estupro (art. 213 e sua combinação
com o art. 223, caput e
parágrafo único); VI – atentado violento ao pudor (art. 214 e sua
combinação com o art. 223 caput e
parágrafo único). Por isso, parte da doutrina entende que, ao utilizar a
conjunção aditiva e, a norma estaria
indicando que somente a forma qualificada prevista no art. 223 caput
e seu parágrafo único é que poderia ser considerada como crime hediondo.
Embora
a redação dos incisos em exame não seja gramaticalmente perfeita, é preciso
reconhecer que o sentido do direito ali contido indica que, tanto as formas básicas
quanto as qualificadas do estupro e do atentado violento ao pudor, são crimes
hediondos. Se a intenção do legislador fosse a de excluir a forma simples do
rol dos crimes hediondos, teria se reportado unicamente à forma qualificada,
referindo-se ao estupro e ao atentado violento ao pudor praticados com lesão
corporal grave ou morte da vítima e, em seguida, indicado os respetivos
dispositivos do CP, como o fez em todo o texto do art. 1º da LCH . No
entanto, tendo sido utilizada a conjunção aditiva e, outro não pode ser o sentido do direito, por mais grave que seja
seu resultado hermenêutico: as duas formas típicas destas infrações
hediondas – a simples e a qualificada - estão enquadradas na categoria penal
de crime hediondo.
Além
disso, é preciso considerar que os dispositivos em análise utilizam-se
do nomen juris estupro e
atentado violento ao pudor, como categoria típica genérica e não
como forma específica a esses dois tipos em suas formas qualificadas pelo
resultado. Em seguida, reportam-se aos arts. 213 e 214 e sua combinação com o
art. 223, caput e parágrafo único, o que permite concluir que se trata
também do gênero estupro ou atentado violento ao pudor e não apenas de suas
formas qualificadas.
3.
Posição da Jurisprudência
Na
jurisprudência, após decisões esparsas em contrário, parece consolidar-se a
tendência de que o estupro e o atentado violento ao pudor, seja na forma
simples ou qualificada, são crimes hediondos e, portanto, sujeitos ao regime
jurídico de maior rigor estabelecido na LCH.
No
STJ, reiteradas decisões perfilham este entendimento jurisprudencial, cuja síntese
pode ser assim formulada: o art. 1º, incisos V e VI, da Lei
8.072/90, considera crime hediondo os tipos penais estabelecidos nos arts. 213 e
214 e em suas combinações com as hipóteses previstas no art. 223 e seu parágrafo
único (RT 745/527 e 746/553 e RSTJ 109/306).
Com
as decisões mais recentes, eventuais divergências naquela Corte ficaram
superadas e consolidada está a posição de que as formas simples e as
qualificadas do estupro e do atentado violento ao pudor são crimes hediondos (REsp
521.700-RS, rel. Félix
Fischer,DJU 01.12.2003, p. 396; HC 29.083-CE, rel. José
A. Fonseca, DJU 28.10.2003, p. 323; Resp 515.004-PR, rel. min. Laurita Vaz, DJU
13.10.2003, p. 432; REsp 311.317-SP, rel. min. Jorge Scartezzini, DJU 29.09.03,
p. 306; HC 16.750-RJ, 5ª Turma, DJU de 22.10.01, p.339. Ver, no mesmo sentido:
HC 16.830-SP, 5ª Turma, DJU de 17.09.01, p. 178; Resp 279.434-SC, 5ª Turma,
DJU de 01.10.01, p.237; Resp 246.479-GO, 5ª Turma, DJU de 15.10.01, p. 280, e
REsp 314.143-RJ, 5ª T., DJU de 11.03.02, p. 270).
O
STF também já decidiu que “o crime de
atentado violento ao pudor, tanto na sua forma simples, Cod. Penal, art. 214,
quanto na qualificada, Cod. Penal, art. 223, caput e par. Único, é hediondo,
ex-vi do disposto na Lei 8.072/90” (HC 81.411-SC, 2ª Turma, rel. min.
Carlos Velloso). Em outra decisão da mesma turma da Suprema Corte, ficou
decidido que “crimes de estupro e
atentado violento ao pudor, ainda que em sua forma simples, configuram
modalidade de crime hediondo” (HC 81.317-SC, 2ª Turma, rel. min. Celso
Mello. Ver, ainda: HC 82.235-5-SP, rel. min. Celso Mello, DJU 28.02.2003; HC
81.894-SP, rel. min. Maurício Corrêa, 2ª T., DJU 20.09.2002; HC 82.098-PR,
min. Ellen
Gracie, DJU 22.11.2002, p. 23).
Essa
posição jurisprudencial encontra-se consolidada no STF, após decisão do
Pleno, de 18.12.01, ao julgar o HC
81.288-SC e firmar o entendimento de que o
estupro e o atentado violento ao pudor, seja na forma simples ou básica, quanto
na forma qualificada, são crimes hediondos.
A
nosso ver o mal não se restringe apenas ao fato de serem as formas básicas do
estupro e do atentado violento ao pudor considerada.s crimes hediondos. Cremos
que o equívoco maior e mais grave, conforme já assinalamos, está na própria
LCH e em suas graves impropriedades jurídicas: adoção de um discutível
conceito legal de crime hediondo e aumento exagerado das penas mínimas para
esses dois crimes contra os costumes. Indiscutivelmente,
o fato mais grave, reiteradamente criticado pela doutrina, foi o de a LCH ter
criado um subsistema punitivo de maior severidade e marginal ao Código Penal.
*João José Leal – Professor do CPCJ/UNIVALI. Ex-Procurador
Geral de Justiça/SC. Ex-Diretor do CCJ/FURB. Sócio da AIDP e do IBCCrim.
[1] TJRS: Ap. Crim. 25.665, RT 533/400.
[2] TACrSP: Bem. Infr. 189.707, JTACrSP 66/58.
[3] LEAL, João José. Crimes Hediondos. A Lei 8.072/90 como Expressão do Direito Penal da Severidade. Curitiba: Juruá, 2003, p. 37 e segs.
[4] MIRABETE, Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal. v. 2. São Paulo: Atlas, 1997, p. 406 e 411. JESUS, Damásio. Direito Penal. v. 3. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 89. MONTEIRO, Antônio Lopes. Crimes Hediondos. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 39. DELMANTO, Celso et alii. Código Penal Comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 458.
[5] FRANCO, Alberto Silva et alii. Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. V. 2. São Paulo: 2001, p. 3096.