DA INCONSTITUCIONALIDADE DAS PRAIAS PARTICULARES NO BRASIL

 

 

 Richard Paes Lyra Junior

Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Santos - Unisantos

           

O Brasil apresenta uma extensa costa litorânea com 7.367 Km de praias, cujas paisagens e características naturais despertam o interesse de inúmeros turistas durante todo ano, tornando suas cidades referenciais turísticos para todo o mundo.

 

De modo que, o constante desenvolvimento econômico e urbanístico de algumas destas cidades litorâneas têm provocado, ainda que indiretamente, consideráveis influxos no ecossistema destas urbes eis que, o sucesso do negócio-turismo exige infindáveis implementações materiais, culminando com a transformação do ambiente.

 

Tal circunstância determina, ainda, o surgimento de outro fenômeno, a construção de verdadeiros “impérios” à beira-mar, seja com a edificação de hotéis ou casarões luxuosos que, por sua vez, instalam benfeitorias e demais melhoramentos nos locais de acesso às praias, atribuindo a estas, de forma gradativa, contornos próprios de um condomínio fechado.

 

Nos últimos anos, o descrito fenômeno difundiu-se rapidamente em cidades litorâneas, dando vazão a seguinte indagação: a manutenção de praias particulares encontra amparo constitucional no Brasil ?

 

Conforme é cediço, a Carta Magna, por meio de seu artigo 20, enumera os bens pertencentes à União, cabendo ao artigo 99 da Lei 10.406/02 (código civil) a classificação dos bens públicos, respectivamente descritos em 3 (três) modalidades, quais sejam: os dominicais, os de uso especial e, por derradeiro, os bens de uso comum do povo.

 

Relativamente a este último, a ilustre professora Maria Sylvia Zanella di Pietro [1] ensina que, in verbis:

 

“ Consideram-se bens de uso comum do povo aqueles que, por determinação legal ou por sua própria natureza, podem ser utilizados por todos em igualdade de condições, sem necessidade de consentimento individualizado por parte da Administração.(grifo nosso)

 

No mesmo sentido o mestre Hely Lopes Meirelles [2] assevera que, in verbis:

 

Bens de uso comum do povo ou do domínio público: como exemplifica a própria lei, são os mares, praias, rios, estradas, ruas e praças. (...) No uso comum do povo, os usuários são anônimos, indeterminados, e os bens utilizados o são por todos os membros da coletividade – uti universi – razão pela qual ninguém tem direito ao uso exclusivo ou a privilégios na utilização do bem: o direito de cada indivíduo limita-se à igualdade com os demais na fruição do bem ou no suportar os ônus dele resultantes.” (grifo nosso)

 

Assim, as praias marítimas são, por força da Constituição Federal, consideradas bens da União, ingressando, ainda, na classificação dos bens de uso comum do povo. Tal premissa denota com lapidar clareza a natureza jurídica atribuída a estas, oferecendo ferramenta deveras concisa para o deslinde do presente imbróglio jurídico, senão vejamos.

 

Contemporaneamente a constituinte de 1988 surge a Lei 7.661/88 [3], instituindo o “Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro - PNGC”, estabelecendo, dentre outros assuntos, normas atinentes ao uso e ocupação da zona costeira.

 

In limine, devemos levar a efeito o disposto no parágrafo único do artigo 2º do referido diploma legal, cujo dispor determina o conceito jurídico da expressão “Zona Costeira”, in verbis:

 

Art.2º - (...)

 Parágrafo único – Para os efeitos desta lei, considera-se Zona Costeira o espaço geográfico de interação do ar, do mar e da terra, incluindo seus recursos renováveis ou não, abrangendo uma faixa marítima e outra terrestre, que serão definidas pelo plano.

 

No intuito de assegurar a preservação do ecossistema marinho, o legislador infraconstitucional incluiu no conceito de “Zona Costeira” as faixas terrestres circunscritas ao perímetro marítimo. Desta feita, ampliou e modernizou tal conceito, cuja definição anterior afigurava-se retrógrada e sujeita a interpretações equivocadas.

 

Delineado o conceito supracitado, o artigo 10 do mesmo diploma legal, estabeleceu critérios específicos inerentes ao acesso às praias marítimas, ratificando conceitos anteriormente explicitados conforme se verifica, in verbis:

  

Art. 10 – As praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido, ressalvados os trechos considerados de interesse de segurança nacional ou incluídos em áreas protegidos por legislação específica..

 §1º- Não será permitida a urbanização ou qualquer forma de utilização do solo na zona costeira que impeça ou dificulte o acesso assegurado no caput deste artigo.(grifo nosso)

 

Ao compulsarmos o teor do supracitado dispositivo legal depreenderemos que, todos os cidadãos têm assegurado o direito de acesso às praias brasileiras, acesso este que só poderá ser restringido em virtude de situações excepcionalíssimas contempladas em lei.

 

Deste modo observa-se que, não há qualquer ressalva que excepcione a construção dos indigitados condomínios fechados, pelo contrário, o parágrafo 1º do aludido dispositivo legal veda expressamente qualquer forma de urbanização ou de aproveitamento do solo que ofereça óbice para o acesso às praias marítimas.

 

Logo, resta evidente o abuso destes condomínios ao coibir o acesso de turistas e banhistas às descritas praias, configurando verdadeiro constrangimento ilegal ante ao flagrante desrespeito as normas em análise.

 

Em contrapartida, alguns doutrinadores entendem pela viabilidade jurídica dos descritos loteamentos fechados à beira-mar e sua, conseqüente, limitação ao acesso às praias marítimas mediante a concessão de uso do terreno público aos particulares interessados.

 

Todavia, o iminente jurista José Carlos Frei [4] rechaça tal afirmação, asseverando que, in verbis:

 

“Na concessão de direito real de uso de ruas, praças, espaços livres, áreas verdes e institucionais para a formação dos loteamentos fechados, impera o desejo dos moradores na sua utilização privativa, de cunho individual (sossego, segurança e confortos pessoais), contrapondo o interesse privado ao coletivo, porque essas áreas públicas estão vocacionadas ao uso comum do povo. Logo, esta modalidade de concessão não se presta a ser utilizada para os bens de uso comum, que pressupõem a universalidade, a impessoalidade e a gratuidade de uso, sem contraprestação pecuniária ou indenização particular, além do que “ ... o princípio geral que rege a utilização dos bens de uso comum é o de que o uso de um seja transitório e precário, não impedindo o uso dos demais.” (grifo nosso)

 

O brilhante ensinamento vem a talho de foice no sentido de elucidar a situação dos terrenos que compõem os condomínios fechados à beira-mar. De modo que, os bens de uso comum do povo não estão sujeitos à concessão de direito real de uso uma vez que, sua essência inviabiliza sobremaneira uma eventual transferência de domínio (titularidade).

 

Os condomínios, por sua vez, resistem a tais argumentos alegando em suma que, ao cercear o acesso da população a tais locais, estariam assegurando a preservação do ambiente e fauna marinha.

 

Data maxima venia, tal argumento configura verdadeiro sofisma uma vez que, por se tratar de um condomínio fechado, em que muitos serviços ali existentes ficam a cargo daqueles condôminos, como assegurar, por exemplo, que o sistema de esgoto não projeta dejetos nas águas do mar?

 

A priori, não nos parece lógico, sequer proporcional, incentivar a construção de tais condomínios sob o ardil argumento de assegurar a preservação do ambiente já que, não é privando o exercício de um direito que conseguiremos resolver problemas inerentes à conscientização ambiental.

 

Outrossim, não é despciendo destacar que algumas municipalidades, por meio de lei, tem “regularizado” os descritos loteamentos à beira-mar, atendendo a solicitação de muitos condôminos que ali residem. Contudo, tais normas afiguram-se flagrantemente vazias e obtusas aos preceitos constitucionais e legais ora analisados, senão vejamos.

  

Conforme aduzido no proêmio, as praias e os chamados terrenos de marinha possuem competência legislativa atrelada, tão somente, a União, inviabilizando qualquer inovação ou alteração legislativa por parte dos demais entes federativos. Desta feita, exsurge absolutamente inconstitucional qualquer tipo de lei municipal tendente a “legitimar” a ocupação e a, conseqüente, construção dos condomínios fechados à beira-mar que limitem o acesso às praias marítimas.

 

Ante aos posicionamentos acima acostados é possível abstrair que, a questão inerente aos condomínios fechados à beira-mar coloca em confronto dois pólos aparentemente antagônicos, porém muito tênues, sobretudo em um país em desenvolvimento como o Brasil, qual seja: interesses particulares versus interesses difusos.

 

Em outras palavras, tais condomínios acabam aderindo as praias marítimas a seu patrimônio como se fosse uma piscina construída em seu quintal, enquanto a população, legítima titular deste bem, fica privada do direito de acesso a uma das poucas atividades de lazer que não lhe impõe um custo.

 

Assim, por se tratar de um bem de uso comum do povo, todo e qualquer tipo de óbice para o acesso às praias marítimas, que não aqueles previstos em lei, representa verdadeira afronta a Carta Magna, cerceando direito constitucionalmente previsto no inciso XV de seu artigo 5º.

 

 


 

Referências bibliográficas

 

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo 9.ed. São Paulo: Atlas,1998.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 21.ed. São Paulo: Malheiros,1996.

FREI, José Carlos. Da legalidade dos loteamentos fechados. In  www.teotonio.org.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 6a ed. São Paulo: Malheiros, 1993.

FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 4a ed.São Paulo: Saraiva, 2003.

 

 


 

Notas

 

1.      DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. ob.cit., pág.427.

2.      MEIRELLES, Hely Lopes. ob.cit, pág. 436/439.

3.     Redação dada pela Lei 7.661/88 - Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro.

4.     FREI, José Carlos. Da legalidade dos loteamentos fechados. ob. cit.