O ATO ILÍCITO NO CÓDIGO CIVIL
10/06/2006
Herez Santos
Bacharel em Ciências Náuticas & Direito
Advogado no Rio de Janeiro - caphs@oi.com.br
SUMÁRIO: 1. Exórdio. 2. Síntese da evolução histórica da responsabilidade civil. 3. O fundamento da reparação civil. 4. Antijuricidade no cível. 5. Responsabilidade. 6. Ato ilícito. 7. O ato ilícito no antigo e no novo Código Civil. 8. Conclusão. Bibliografia.
1. Exórdio
Segundo vem sendo dito, é possível se constatar com certa facilidade o fato de alguns muitos misturarem conceitos pertinentes ao instituto da responsabilidade civil, o fato da jurisprudência, no mais das vezes, considerar falta de nexo causal em lugar da ausência de culpa, e o fato do fortuito, da força maior e da falta exclusiva da vítima, tecnicamente excludentes da culpa, serem confundidas por não poucos com a ausência de nexo causal.
Se por um lado a doutrina ressalta que o ponto de maior controvérsia no plano da responsabilidade civil consiste no modo de entender os seus fundamentos, por outro, algumas dentre as mais conhecidas e versadas figuras do Direito vêm confirmando a balbúrdia que se constata instalada no seio daquele instituto.
Observa Clovis Belivaqua, por exemplo, que a teoria dos atos ilícitos reduzida aos seus próprios elementos é clara e simples e tem recebido das noções de culpa e responsabilidade com as quais tem íntima ligação, obscuridades, filhas das sutilezas em que têm sido férteis os escritores.
Em quadra própria, Antonio Lindenbergh C. Monteiro expõe que a teoria da indenização de danos só começou a ter uma colocação em bases racionais quando os juristas constataram, após quase um século de estéreis discussões em torno da culpa, que o verdadeiro fundamento da responsabilidade civil devia ser buscado na quebra do equilíbrio jurídico-econômico provocada pelo dano.
Aguiar Dias, principal referencial doutrinário sobre responsabilidade civil no país, de sua feita, pondera que Von Iehring, defendendo não haver reparação sem culpa, satisfez por dilatados anos a consciência jurídica.
É também, registre-se, o respeitado jurista Orlando Gomes quem assevera ser dado aos escritores se embaraçarem na explicação da chamada responsabilidade extracontratual.
Assim, por tudo, não é sem razão que De Page, citado por Caio Mário, afirma que na senda da responsabilidade civil, tanto sob o aspecto legislativo quanto doutrinário, como, ainda, jurisprudencial, o que se vê margeia a anarquia.
O disciplinamento do ato ilícito pela recém-inugurada codificação civil brasileira de 2002, ao que tudo indica, não bastou para afastar a confusão de idéias que ainda gravita em torno desse instituto.
É justamente sobre esse desencontro de formulações pertinentes ao ato ilícito que se desenvolve o presente e despretensioso estudo que ora se enceta.
2. Síntese da evolução histórica da responsabilidade civil
A primeira norma escrita disciplinando a aplicação de penalidades àqueles que causassem danos a terceiros foi o Código de Hamurabi, do Rei Hamurabi (1792-1750 ou 1730-1685 a.C.), criador do império babilônico. Dizia tal diploma de lei em um de seus tantos artigos:
“196º - Se alguém arranca o olho a um outro, se lhe deverá arrancar o olho”.
Eis a pena de talião, calcada na idéia da reparação do mal com mal igual, sob o lastro de que qualquer dano causado a outrem deve ser considerado contrário ao direito.
No começo os romanos não distinguiram a responsabilidade civil da responsabilidade penal, impondo de igual modo uma pena ao causador do dano.
Maior evolução do instituto ocorreu num segundo momento, a posteriori, com a Lex Aquilia, que deu origem à denominação da responsabilidade civil delitual ou extracontratual, quer seja, a chamada responsabilidade civil aquiliana.
Nas palavras de Ulpiano, sob a lei Aquília a mais leve culpa deve ser considerada – “in lege Aquilia et levissima culpa venit.”
A concepção de pena foi, então, aos poucos, sendo substituída pela Idéia de reparação do dano sofrido, que ao final acabou incorporada ao Código Civil de Napoleão, o qual, inclusive, exerceu grande influência sobre certos institutos do Código Bevilaqua de 1916.
3. O fundamento da reparação civil
Se desde a análise lingüística da responsabilidade já se vê a promoção da sanção fundamentada com maior propriedade, a reparação de todo dano injusto vem a ser uma exigência da consciência jurídica universal.
Clovis Belivaqua justificava a reparação argumentando que o Direito Civil não visa o agente simplesmente, mas principalmente a vítima, vindo em seu socorro com o fito de restaurar, tanto quanto possível, o seu direito violado, conseguindo assim o que, em suas próprias palavras, se poderia chamar de eurritmia social refletida no equilíbrio dos patrimônios e das relações pessoais que se formam no círculo do direito privado.
No dizer de Silvio Rodrigues, o princípio geral de direito, informador de toda a teoria da responsabilidade, encontradiça no ordenamento jurídico de todos os povos civilizados e sem o qual a vida social é inconcebível, é aquele que impõe, a quem causa dano a outrem, o dever de repará-lo”.
Embora possa haver dano sem responsabilidade, como v.g. se dá na concorrência comercial leal que se instala entre dois comércios do mesmo ramo, o certo é que, como resta pacificado, sem dano não há responsabilidade. Alvino Lima, aliás, confirma com propriedade que a inexistência de dano é óbice à pretensão de uma reparação, porque sem objeto.
E a idéia de reparação, diga-se, é inclusive mais ampla do que a do ato ilícito, pois, se este cria o dever de indenizar, há casos de ressarcimento de prejuízo em que não se cogita da ilicitude da ação do agente.
4. Antijuricidade no cível
O Direito surge no seio social em razão da incessante busca pela instauração e preservação da ordem, principio fundamental da natureza e idéia primária do homem, sem a qual a vida na pólis se inviabiliza.
Assim, regra fundamental à vida grupal é aquela que vem informada no dístico romano neminem laedere.
Segundo Orlando Gomes, o ato haverá de ser considerado antijurídico sempre que como decorrência de uma infração da regra que disciplina a atuação estritamente jurídica de alguém, se manifeste uma desconformidade, ainda que não venha esta lesar direito subjetivo de quem quer que seja. E cita com proficiência o exemplo daquele que, pretendendo transmitir mortis causa seus bens a determinadas pessoas, deixa de observar a forma autorizada na lei, descumprindo assim as solenidades ordenadas, e, promovendo, pois, ato desconforme à regra de Direito.
Situação diferente, no entanto, diz mais aquele versado jurisconsulto, apresenta-se quando do ato infringente de norma jurídica resulta dano à outra pessoa. A violação implica, nesse caso, lesão a um direito subjetivo, provocando reação diferente da ordem jurídica.
Portanto, pode ocorrer de um ato ser rotulado de antijurídico sem que, por conta dele, ao agente se imponha necessariamente o dever de indenizar. Atribuir-se-á, porém, esse dever ao autor da ação se do ato decorrer dano à esfera jurídica de outrem.
Ambas as situações antes mencionadas reproduzem espécies de antijuricidade subjetiva. Mas a antijuricidade não se limita, porém, diga-se, a essas duas espécies subjetivas. A ordem jurídica, por exigência que decorre, sobretudo, de reclamo moral recomendando a reparação de todo e qualquer dano, admite ainda a antijuricidade objetiva, aquela para qual o proceder se faz irrelevante.
5. Responsabilidade civil
Nas palavras de Pontes de Miranda, quando se faz o que não se tem o direito de fazer, certo é que se comete ato lesivo, pois que resta diminuído, contra a vontade de alguém, o ativo dos seus direitos, ou se lhe eleva o passivo das obrigações, o que é genericamente o mesmo.
Maria Helena Diniz, sintetizando a conceituação de responsabilidade civil aduz que se pode defini-la como a aplicação de medidas que obriguem alguém a reparar dano moral ou patrimonial causado a terceiros em razão de ato do próprio imputado, de pessoa por quem ele responde, ou de fato de coisa ou animal sob sua guarda (responsabilidade subjetiva), ou, ainda, de simples imposição legal (responsabilidade objetiva).
Aquele que destrói uma res nullius não chega a provocar um prejuízo juridicamente relevante por conta exatamente de inexistir a vítima do dano provocado, o que permite dizer em via versa que o fundamento da responsabilidade baseia-se no desequilíbrio jurídico-econômico promovido pelo prejuízo.
Não se pode negar que no campo da responsabilidade civil o Código Francês de 1804 foi suporte e modelo para muitos dos institutos do nosso estatuto civil ab-rogado. A culpa como pressuposto da responsabilidade, acolhida no art. 159 do Código Civil de 1916, por exemplo, teve por inspiração o art. 1383 do estatuto francês.
6. Ato ilícito
O conceito de ato ilícito é de suma importância para a responsabilidade civil, vez que este faz nascer a obrigação de reparar o dano. O ilícito repercute na esfera do Direito produzindo efeitos jurídicos não pretendidos pelo agente, mas impostos pelo ordenamento. Em vez de direitos, criam deveres. A primeira das conseqüências que decorrem do ato ilícito é o dever de reparar. Mas não se faz única, eis que, dentre outras, este pode dar causa para a invalidade ou cessação do ato, por exemplo.
No campo do direito, o ilícito alça-se à altura de categoria jurídica e, como entidade categorial, é revestida de unidade ôntica, diversificada em penal, civil, administrativa, apenas para efeitos de integração, neste ou naquele ramo, evidenciando-se a diferença quantitativa ou de grau, não a diferença qualitativa ou de substância, pondera o provecto José Cretella Jr.
E o princípio que obriga o autor do ato ilícito a se responsabilizar pelo prejuízo que causou, indenizando-o, é de ordem pública, ressalta a renomada Maria Helena Diniz.
A definição de ato ilícito afirmada pela plêiade de renomados doutrinadores a seguir mencionados, salienta diferença apenas no estilo pessoal de cada deles expor. Vejam-se.
“Ato ilícito é, portanto, o que praticado sem direito, causa dano a outrem.” (Clovis Belivaqua)
“Que é ato ilícito? Em sentido restrito, ato ilícito é todo fato que, não sendo fundado em Direito, cause dano a outrem.” (Carvalho de Mendonça)
“Ato ilícito, é, assim, a ação ou omissão culposa com a qual se infringe, direta e imediatamente, um preceito jurídico do direito privado, causando-se dano a outrem.” (Orlando Gomes)
“ ... ato ilícito é o procedimento, comissivo (ação) ou omissivo (omissão, ou abstenção), desconforme à ordem jurídica, que causa lesão a outrem, de cunho moral ou patrimonial.” (Carlos Alerto Bittar)
“O caráter antijurídico da conduta e o seu resultado danoso constituem o perfil do ato ilícito.” (Caio Mario da Silva Pereira)
“O ato ilícito é o praticado culposamente em desacordo com a norma jurídica, destinada a proteger interesses alheios; é o que viola direito subjetivo individual, causando prejuízo a outrem, criando o dever de reparar tal lesão.” (Maria Helena Diniz)
“Ato ilícito. Ação ou omissão contrária à lei, da qual resulta danos a outrem.” (Marcus Cláudio Acquaviva)
Na trilha traçada pelos aludidos letrados, dir-se-ia, pois, que somente por razão a uma pretendida menção genérica é que admite-se considerar o ilícito como desconformidade pura e simples, isto é, que se o possa ter tão só como ato contrário à lei. Não fosse assim, por certo que de toda e qualquer infração exsurgiria o dever de reparar, o que de fato não acontece. Por conta disso, costuma-se enunciar que o ato ilícito constitui uma ação comissiva ou omissiva, imputável ao agente, danosa ao lesado e contrária à ordem jurídica.
Aliás, na caracterização do ato ilícito, o direito violado, diga-se, deve ser, por força mesmo da sistemática orgânica do instituto da responsabilidade civil, direito absoluto, isto é, aquele imposto erga omnes, vez que o direito relativo ou contratual, por interessar exclusivamente às partes, não é tido senão como ato ilícito lato sensu.
A culpa, apregoe-se, é o elemento anímico do ato ilícito. E este, reitera-se, para efeitos de responsabilidade civil, se refere à ação ou omissão que, contrariando o ordenamento jurídico, vem causar algum tipo de dano a terceiro.
7. O ato ilícito no antigo e no novo Código Civil
Estabelece o art. 159 do Código Belivaqua, ora ab-rogado, conforme segue, verbis :
“Art. 159. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano.”
Sobre a violação de direito doutrina o aplaudido Alvino Lima, verbis:
“Viola-se o direito de outrem todas as vezes que se fere a sua pessoa ou o seu patrimônio.”
Ora, considerando, como bem leciona aquele insigne autor, que violar direito abrange tanto a esfera pessoal quanto a patrimonial e, considerando ainda que a lei não contém palavras inúteis, porque, então, pergunta-se, o prefalado regramento não empregou tão só a expressão “violar direito”, ao invés desta vir complementada por aquela outra, quer seja, “ou causar prejuízo”?
A resposta está em que o art. 159 do Código Civil de 1916 estabelece que o agente fica obrigado a reparar dano imaterial por violar direito, ou, dano material por causar prejuízo, ou a ambos reparar, quando for o caso.
Partilha desse entendimento, se nos parece, o douto Carlos Roberto Gonçalves, com o que expressa, verbis :
“A violação de um direito, como vimos, mesmo sem alegação de prejuízo ou comprovação de um dano material emergente, pode, em certos casos, impor ao transgressor a obrigação de indenizar, a título de pena privada (art. 927 do CC: hipótese de pena convencional; nos caso de violação dos chamados direitos da personalidade, como a vida a saúde, a honra, a liberdade etc.).”
Assim, confirma-se, ao estatuir o art. 159 do Código de 1916 que “violar direito, ou causar prejuízo a outrem, obriga o agente a reparar o dano”, o que na verdade faz aquele dispositivo é determinar que, ante a ocorrência de dano imaterial (violar direito), ante a ocorrência de dano material (causar prejuízo), ou ante a ocorrência de ambos (violar direito e também causar prejuízos), o agente se obriga a reparar aquele, este, ou, eventualmente, todas as espécie de danos que ele tiver dado causa.
Em relação ao art. 186 do Código Reale, ora em vigor, diz este, verbis:
“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”
O texto de lei à mostra, visa, como dele se pode inferir, coisa diferente daquele seu correspondente no Código Bevilaqua, quer seja o art. 159. A regra ora sob comento dita o que deve ser tido como ato ilícito, e deixa de declarar o efeito que dele decorre, eis que proclamado este no art. 927.
A expressão “violar direito” no texto do art. 186 do novo Código revela a antijuricidade do ato. No art. 159 do Código ab-rogado, esta mesma expressão, diversamente, diz respeito ao dano imaterial nele previsto.
Mas não é só isso.
O Projeto de Lei n° 7.312 de 2002 propõe alterar o art. 186 da novel codificação civil, dando-lhe a seguinte redação:
“Art. 186. Aquele que,
por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito ou
causar dano a outrem, ainda que
exclusivamente moral, comete ato ilícito.”
Nas palavras do proponente, é a seguinte a justificativa da alteração pretendida, verbis:
“A ilicitude do ato jurídico não pode estar vinculada a imputação de dano a outrem; basta a conduta antijurídica que o ato não encontrará respaldo no sistema para sua preservação ou, ainda, gerará o direito da parte prejudicada de provocar a tutela jurisdicional para impedir a continuidade de produção de efeitos pelo ato ilícito e, conforme o caso,pedir a reparação dos danos causados.”
A proposta de alteração, contudo, contém expressivo equívoco. Talvez mesmo por conta da confusão que, apontada como visto por muitos eminente juristas, reina no campo da responsabilidade civil.
Como demonstrado ao longo da exposição, o ilícito será sempre antijurídico, mas a recíproca não necessariamente se faz verdadeira. E, se é certo que a conduta antijurídica não deve encontrar respaldo no sistema como bem vem ressaltado naquela justificativa, certo também poder afirmar-se que uma vez ausente o dano, impróprio se pretender que a antijuricidade se externe como ato ilícito que não é.
Ainda sobre a alteração da redação do art. 186 do novel diploma cível, verifica-se mais que o proponente argumenta que à parte prejudicada deve ser assegurado o direito de provocar a tutela jurisdicional para impedir a continuidade de produção de efeitos (danos) pelo ato ilícito (violar direito e provocar dano). Ora, esse direito já vem assegurado de forma implícita na atual redação do art. 186 e na sistemática do Código. Em assim sendo, também sob este aspecto carece de propósito a alteração pretendida.
A redação do art. 942 do novo Código é, recorda-se, a seguinte, verbis:
“Art. 942. Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado. Se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação.”
Observa-se que o artigo sob comento decreta o efeito (reparação) sobre os bens do responsável por decorrer este quer da ofensa (dano material) quer da violação do direito (dano imaterial) por ele promovido. Nesse caso, por se tratar tão só do efeito do ato ilícito, e não do conceito deste, válida-se o emprego da disjuntiva “ou” presente entre os termos “ofensa” e “violação de direito”, à semelhança do que acontecia no art. 159 do Código anterior.
Em outra aresta, relativo ao abuso de direito como ato ilícito, estatui o art. 187 do Código novo, verbis:
“Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”
Há de se notar que a antijuricidade anunciada na regra em destaque é objetiva. Nesse sentido veja-se o entendimento dado pelo enunciado n° 37 da I jornada de Direito Civil da Justiça Federal - http://www.justicafederal.gov.br - sobre o texto do artigo sob comento, verbis:
“A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa, e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico.”
Portanto, a expressão ato ilícito presente no texto do art. 187 da nova codificação vem ali empregada no sentido lato senso do seu significado.
Ante tudo, pois, não se pode aceitar nem tampouco se emprestar apoio à proposta de alteração contida no prefalado Projeto de Lei.
E mais ainda.
O texto do art. 927 do novo diploma civil, este sim, ressentindo-se da melhor técnica, merece remendo. Diz aquela regra de lei, in verbis:
“Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.”
Observa-se no dispositivo gritante redundância, como quedará explicado com o que segue.
A expressão “causar dano a outrem” já se encontra presente, ínsita mesmo, no conceito de ato ilícito enunciado pelo atual art. 186 - “ação ou omissão voluntária, decorrente de negligência ou imprudência, que viola direito e causa dano a outrem, ainda que exclusivamente moral.” Aí repousa a tautologia apontada.
Melhor, então, seria dizer :
Art. 927. Aquele que praticar ato ilícito (arts. 186 e 187), fica obrigado a reparar o dano dele decorrente.
8. Conclusão
Por conta da falta de um maior entendimento dos fundamentos da responsabilidade civil, se depara ainda com uma certa dose de confusão reinante na senda daquele instituto, alcançando o ato ilícito inclusive. É certo, pois, que sobre todo o Direito haverá de recair reflexos decorrentes desse fato, eis que a responsabilidade civil se faz unidade ôntica da ordem jurídica.
Mesmo nos primórdios da evolução social a consciência humana já vinha a reprovar a violação da paz social a que o dano vem dar azo.
Se antes aplicava-se a pena de talião, com o tempo esta se transmudou em sanção a gravar tão só o patrimônio do agressor.
Princípio geral de direito aplicável em qualquer latitude impõe a quem causa dano a outrem o dever de repará-lo, sob pena de inviabilizar o convívio social.
Ato antijurídico é todo aquele contrário ao Direito. Ato ilícito, porém, é somente aquele que viola direito e causa dano a outrem, fazendo exsurgir por conta disso a obrigação de reparar, quer retornando a vítima ao statu quo ante quer compensando-a da dor física ou moral.
O art. 159 do Código de 1916, seguindo a linha de estruturação elegida, quer seja, aquela que se fazia própria ao projeto, não conceitua o ato ilícito. Aponta, isto sim, os elementos constitutivos deste e o efeito que dele decorre. É preciso que fique bem claro que o referido Código, monumento jurídico legado por Clovis Belivaqua e colaboradores ao Brasil e ao mundo, considerou bastante e suficiente per se que assim fosse. Não se queira com isso dizer que os feitores daquela brava codificação pretérita incorreram em atecnia ou coisa que o valha. Não. Cada qual obra solução da maneira que esta a si se lhe apresenta como sendo aquela que melhor atende ao escopo do esboço delineado e pretendido.
A expressão “violar direito” integrante do texto do dispositivo 159 do Código ab-rogado, ali se vê empregada fazendo referência ao dano imaterial. Senão, desnecessário aquela outra, que refere-se, por certo, ao dano material - “causar prejuízo”.
O art. 186 do novel Código em vigor, conceitua em essência o ato ilícito. Tanto é assim que ficou a cargo do artigo art. 927 decretar o efeito que deste decorre. E a expressão “violar direito” integrante desse referido texto de lei quer tão só exaltar a antijuricidade do ato promovido por aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, causa dano a outrem, ainda que exclusivamente moral. Reside nesse dispositivo a cláusula geral da ilicitude subjetiva.
A proposta de alteração do art. 186 contida no Projeto de Lei n° 7.312 de 2002 não merece prosperar, eis que, salvo melhor juízo, se esborralha por carecer de juricidade.
Por conta da gritante redundância presente no atual art. 927 da recente codificação civil, reclama aquele texto de lei reparo. Quiçá deva este enunciar algo como: “aquele que praticar ato ilícito (arts. 186 e 187), fica obrigado a reparar o dano dele decorrente.” À registro a sugestão ora legada.
Quid jus?
Bibliografia
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