O Princípio do juiz natural e as conseqüências da inobservância das regras constitucionais de competência
Galtiere de Oliveira Carneiro -
Estudante do Curso de Direito - Faculdades Jorge Amado -
Tanto no processo civil quanto no penal, fala-se no princípio do juiz natural, geralmente sem precisar-se o seu conteúdo. Qual o significado desse princípio? O que, em razão dele, se proíbe? O que, apesar dele, é permitido?
Observa-se, desde logo, que em passo algum a Constituição se refere a “juiz natural”. Apontam-se, porém, como consagração do princípio o disposto no artigo 5º, LIII e XXXVII: “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”; “não haverá juízo ou tribunal de exceção”.
Atribui-se um duplo conteúdo substancial a esse princípio: um, imediato, ligado à imparcialidade do juiz, e outro, mediato, ligado à igualdade das partes. Cita lição de Sérgio Gilberto Porto: “É exatamente na igualdade jurisdicional que encontramos a mais pura essência do juízo natural, ou seja, se é certo que ninguém pode ser subtraído de seu Juiz constitucional, também é certo que ninguém poderá obter qualquer privilégio ou escolher o juízo que lhe aprouver, sob pena de tal atitude padecer de vício de inconstitucionalidade por violação exatamente do juízo natural”. Mais do que explicar, a lição suscita dúvidas. Que a parte não pode escolher o juízo que lhe aprouver é inegável, mas isso não decorre do princípio do juiz natural, mas da circunstância de que a competência dos juízes é estabelecida por lei. Mesmo assim, surgem dúvidas. É constitucional a cláusula de eleição de foro? Pode-se pensar na hipótese rara, mas não impossível, de opção por foro em que haja uma única vara com um único juiz. Há violação do princípio quando prorrogada competência relativa? Parece claro que o juiz, cuja competência é prorrogada, não é o “juiz natural” da causa. Contudo, jamais se cogitou, aí, de inconstitucionalidade por violação do princípio do juiz natural.
Sob outro enfoque, a doutrina contemporânea identifica no princípio em análise uma natureza dúplice: além de proibir o juízo ou tribunal de exceção, assegura que ninguém seja processado nem sentenciado senão pela autoridade competente. Cita lição de Ferrajoli, que vê, no princípio, tríplice conteúdo: 1 – a necessidade de que o juiz seja pré-constituído pela lei e não indicado post factum; 2 – a inderrogabilidade e a indisponibilidade das competências; 3 – a proibição de juízes extraordinários ou especiais. À luz do princípio, pareceria que as leis que alteram competências, mesmo quando criam e extinguem órgãos judiciários, somente poderiam ser aplicadas a casos futuros. É assente, contudo, que se trata de normas de aplicação imediata. Faltou exame do disposto no artigo 87 do CPC: “Determina-se a competência no momento em que a ação é proposta. São irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem órgão judiciário ou alterarem a competência em razão da matéria ou da hierarquia”. Quanto à “inderrogabilidade e a indisponbilidade das competências”, pode-se repetir que faltou o exame da constitucionalidade das hipóteses de prorrogação da competência. Mesmo quanto à proibição de juízes extraordinários ou especiais haveria dúvidas a solver. São constitucionais os “regimes de exceção” criados pelos tribunais, para desobstruir órgãos que acumularam número invencível de processos? E o que dizer de iniciativas como o da “sentença zero”, em que processos são subtraídos ao “juiz natural”, para julgamento por juízes designados pelo tribunal? É preciso enfrentar os problemas do mundo real, pois não se vive no mundo dos princípios.
Há uma sistematização feita por Felipe Bacellar Filho, que identifica, no princípio do juiz natural, a existência de cinco significados, não excludentes.
O primeiro, no plano da fonte, institui a reserva absoluta da lei para a fixação da competência do juízo. A dúvida, aqui, diz respeito aos regimentos internos dos tribunais, que distribuem competências entre seus órgãos, bem como a atos administrativos, como os que distribuem os feitos entre dois juízes, conforme sejam de número par ou ímpar. Haveria inconstitucionalidade, nessas disposições, que visam a resolver graves problemas enfrentados pelos tribunais?
O segundo diz respeito ao plano da referência temporal. Ninguém será processado ou julgado por órgão instituído após a ocorrência do fato. Repete-se, aqui, a dúvida sobre as normas de direito temporal, que têm eficácia imediata, sobretudo quando criam ou extinguem órgãos judiciários.
O terceiro diz respeito ao plano da imparcialidade, com o afastamento do juiz impedido ou suspeito e imunidade do órgão judicante a ordens ou instruções hierárquicas, enquanto no exercício da jurisdição.
O quarto diz respeito à abrangência funcional, que visa a garantir ao jurisdicionado a determinabilidade de qual órgão irá decidir o fato levado a juízo.
O quinto diz com a garantia de ordem taxativa de competência, que assegura a pré-constituição dos órgãos e agentes, excluindo qualquer alternativa deferida à discricionariedade de quem quer que seja. Eventual modificação de competência deve estar prevista em leis anteriores ao fato.
O que se constata, de uma leitura crítica desse quíntuplo conteúdo, é que o princípio do juiz natural, entendido em termos absolutos, pode inviabilizar o exercício da jurisdição; relativizado, perde sua força como princípio.
Logo, significa que é natural, competente, para o julgamento, a autoridade a que a Constituição Federal atribuir competência para julgamento. Não podem ser criados juízes ou tribunais para julgar crimes específicos e nem especificados. Assim pode haver uma delegacia de entorpecentes, mas não um tribunal de julgamento de traficantes.
Há uma discussão constitucional especialmente relevante quanto à competência da 4ª Câmara do TJ quanto ao julgamento de Prefeitos, na medida em que ela julga, de fato, todos os processos envolvendo essa autoridade.
Podemos, portanto, afirmar que o princípio do juiz natural tem dupla garantia: a proibição de juízo ou tribunal de exceção (“ex post facto”) e que os acusados têm direito de ser processados e sentenciados por juízo constitucionalmente e previamente competente (“ex ante facto”).
A garantia do juiz natural não atinge a possibilidade de criação de justiças especializadas(ex: militar e eleitoral).Nada impede também que se criem competências em função da pessoa: foro privilegiado por prerrogativa de função. Isto em virtude da maior exposição de determinados ocupantes de funções públicas, o que pode levar a acusações levianas.
1. O princípio do juiz natural no direito brasileiro
Na tradição do direito brasileiro, o princípio do juiz natural inseriu-se, desde o início, em sua dupla garantia nas Constituições, correspondendo á proibição de tribunais de exceção, ex post facto, e à garantia do juiz competente.Deixava-se bem clara, ao lado disso, a permissão da instituição de Justiças especializadas, pré –constituídas.
A idéia de que o princípio do juiz natural corresponde à garantia de que ninguém pode ser subtraído ao seu juiz constitucional ( considerando-se juiz natural ou autoridade competente, no direito brasileiro, o órgão judiciário cujo poder de julgar derive de fontes constitucionais) permeou a Assembléia Nacional Constituinte, que voltou a explicitar, na Constituição de 1988, as duas garantias do juiz natural: “Não haverá juízo ou tribunal de exceção” (CF, art.5°.,XXXVIII) e “Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” (CF, art.5°., LIII).
Não se confunde com tribunais de exceção a Justiça especializada, orgânica, pré-constituída, integrante do Poder Judiciário, onde ocorre apenas uma prévia distribuição da competência, ora em razão das pessoas, ora em razão da matéria.Os tribunais ad hoc funcionam para cada caso concreto, enquanto a Justiça especializada aplica a lei a todos os casos de determinada matéria ou que envolvam determinada pessoa.Também não consubstanciam transgressão ao princípio do juiz natural as regras que estabelecem a competência originária dos tribunais, para o processo e julgamento de determinadas pessoas, em razão da denominada “prerrogativa de função”. Aqui não há foro privilegiado que se estabeleça como favor pessoal, para excluir órgãos normalmente competentes, mas, sim, fixação de competência funcional, hierárquica, ratione personae, para ocupantes de altos cargos ou funções públicas. A jurisprudência é tranqüila na distinção entre essa competência e foro privilegiado. Outra questão atinente ao juiz natural é a da composição dos tribunais estaduais, com a fixação de critérios para a sua integração por juízes substitutos que não participam dos quadros de formação permanente de desembargadores: o Pleno do STF entendeu que a previsão da substituição, por regimento interno, fere o princípio do juiz natural, podendo, porém, ser feita por lei estadual.[1]
Dito isto, prosseguiremos à análise das conseqüências da inobservância das regras constitucionais sobre competência.
De acordo com Ada Pellegrini, além da nulidade do processo, haveria inexistência dos atos processuais. A inexistência está ligada aos pressupostos processuais (ação, partes e juiz).
Já para Maria Lúcia Karam, ocorreria a nulidade dos atos decisórios e/ou atos instrutórios. No caso de lei infra-constitucional, a nulidade seria dos atos decisórios.E no caso de regras constitucionais, haveria a nulidade de ambos os atos.Logo, quando a inobservância das regras referir-se a regras infra-constitucionais, não haverá nulidade de ambos os atos. Haveria nulidade dos atos decisórios e os atos instrutórios seriam válidos. O único caso de nulidade dos dois atos ocorreria apenas no caso de violação do princípio do juiz natural.
Paulo Rangel tem um entendimento diverso de Pellegrini e Karam.Diz que, tanto nos casos de inobservância de regras constitucionais e infra-constitucionais, haveria nulidade dos atos instrutórios e decisórios.
Para ele, na CF de 88, no art. 5°, LIII, não há distinção entre a competência constitucional e infra-constitucional. Sua posição se contradiz com a concepção de juiz natural.
O autor considera revogado o art. 567 do CPP, que permite apenas a anulação dos atos decisórios, em uma alusão clara de que os atos que não tenham cunho de decisão não precisam ser anulados. Se o legislador constituinte não distinguiu, não é lícito ao intérprete distinguir.
Art. 5°, CF LIII: “... ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente...”.
Assim, exige que todos os atos processuais ( postulatórios, ordinatórios, instrutórios e decisórios) sejam presididos pelo juiz natural da causa. A Constituição Federal exigem que o processo e a sentença sejam presididos e proferidos, respectivamente, por juiz competente.
É importante ainda analisar a aplicação no tempo da norma penal para melhor compreender a função do princípio do juiz natural.
O art. 2 ° do CPP adota o critério do tempus regit actum, ou seja, adota a aplicação imediata da lei processual penal. Esta é a posição majoritária da doutrina.
Porém, há entendimentos contrários que defendem a manutenção da competência quando da ocorrência da infração, visando resguardar o princípio do juiz natural.
Ada Grinover defende esta posição, onde a lei processual só deve ter eficácia a partir deste momento. Isto no caso de superveniência de justiça especializada e vice-versa.
No caso de modificação de competência do foro por prerrogativa de função, Ada defende a aplicação retroativa da modificação de competência.
A correspondência cargo e função pública têm que ser anterior, instituída em lei, para a aplicação da competência do foro por prerrogativa de função, em respeito ao
princípio do juiz natural.
Salvador, 29 de outubro de 2004.
4. Bibliografia:
Luís Antônio Longo, O princípio do juiz natural e seu conteúdo substancial.In: PORTO, Sérgio Gilberto. As garantias do cidadão no processo civil.Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2003.
Grinover, Ada Pellegrini. As nulidades no processo penal /Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes, Antônio Magalhães Gomes Filho.- 6ª ed. Ver.,ampl. E atual., 3ª tir.,com nova jurisprudência e em face da Lei 9.099/95 e das leis de 1996.- São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.
[1] Ada Pellegrini Grinover, As nulidades no processo penal.São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.