O RETROCESSO PROCESSUAL FRENTE ÀS SÚMULAS DOS TRIBUNAIS SUPERIORES
RESUMO
A Emenda Constitucional nº 45 de dezembro de 2004, juntamente com a Lei 11.417, de dezembro de 2006, introduziram no Direito Brasileiro a súmula de caráter vinculante, fazendo com que as decisões do Supremo Tribunal Federal passem a ser obrigatórias para os demais tribunais do Poder Judiciário, bem como para a Administração Pública Direta e Indireta. Por conseguinte, a adoção de tal medida visa o “desafogamento” da máquina jurídica presa a um número surreal de processos e acabar com a morosidade existente. Por outro lado, a implementação da súmula de efeito vinculante poderá ocasionar o engessamento da magistratura, pois ao obrigar os juízes a seguirem de forma mecânica tal procedimento estará vedando-se um princípio basilar do direito, qual seja: o livre convencimento do juiz de dizer fazer a justiça no caso concreto.
Palavras chaves: Súmula Vinculante. Retrocesso. Morosidade. Celeridade. Convencimento.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 5
1 A ORIGEM DO DIREITO SUMULAR ..................................................................... 7
2 AS SÚMULAS NO ORDENAMENTO JURÍDICO E SEU PAPEL NO PODER JUDICIÁRIO............................................................................................................... 9
2.1 Os efeitos favoráveis da imposição das Súmulas ........................................ 10
2.1.1 A multiplicação de demandas repetidas e o acúmulo de ações nos Tribunais .................................................................................................................................. 11
2.1.2 A existência de decisões conflitantes sobre o mesmo tema ............................12
2.2 Os efeitos contrários à imposição das Súmulas............................................ 13
2.2.1 O livre convencimento da Magistratura ........................................................... 14
2.2.2 A fábrica de liminares ...................................................................................... 17
3 O CHOQUE DA JURISPRUDÊNCIA DIVERGENTE FACE À SÚMULA VINCULANTE .......................................................................................................... 19
4 UMA (DIS)SOLUÇÃO JURÍDICA ......................................................................... 21
CONCLUSÃO .......................................................................................................... 24
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 26
INTRODUÇÃO
A adoção da súmula vinculante no nosso sistema judicial através da Emenda Constitucional nº 45, de dezembro de 2004 e, após, regulada pela Lei nº 11.417, de dezembro de 2006, vieram a implantar o efeito vinculante das súmulas do Supremo Tribunal Federal para todas as instâncias do Poder Judiciário, bem com para a Administração Pública Direta e Indireta.
Visando, principalmente, coibir o aumento desenfreado de processos remetidos aos tribunais superiores, à súmula tida como vinculante preza, ainda, que processos idênticos tenham decisões conflitantes, assim como que o processo judicial tenha um tempo razoável de duração. Portanto, tais súmulas visam à celeridade das demandas reduzirem, de forma exclusiva, a morosidade existente no judiciário brasileiro.
Todavia, as súmulas vinculantes não têm o condão – na doutrina e no próprio judiciário – de verdade absoluta, sendo que há muita divergência sobre a sua implementação e constitucionalidade no Direito, uma vez que a obrigatoriedade de tais súmulas acarretará no engessamento das decisões judiciais, visto que os magistrados estarão vinculados às mesmas, constituindo, assim, um aprisionamento do livre convencimento do juiz, princípio básico num Estado Democrático de Direito.
Deste modo, quando se esperava uma reforma processual estabelecida em princípios norteadores do direito, eis que surge aos olhos vendados do Poder Judiciário uma reforma capaz de proporcionar, única e exclusivamente, um retrocesso histórico-político-jurídico, pois não tem a súmula vinculante, em nenhum momento, o propósito de desafogar a máquina judiciária.
Por outro lado, é sabido que o processo judicial deve ser realizado com eficácia e velocidade, desenvolvendo-se e encerrando-se no menor prazo possível, a fim de evitar prejuízos enormes daqueles que buscam, como última instância de solução, o abrigo do Poder Judiciário, motivo pelo qual a sumulação evitaria – na visão de seus defensores - manobras protelatórias e morosidade processual, impossibilitando a aplicação de mecanismos jurídicos prejudiciais à busca da verdade real e contrários aos preceitos norteadores da veracidade e da utilidade processual, sob pena da prestação jurisdicional trilhar o defeituoso caminho de objetivar o seu fim tardiamente.
De outra banda, uma maior celeridade não corresponderia a uma prestação jurisdicional eficiente e justa. O aprisionamento da interpretação dos juízes em nada beneficiária um Judiciário correto, justo e eficaz. Pelo contrário, a adoção da súmula vinculante, tão-somente, atenderá a certos interesses momentâneos do poder político dominante, vedando a oxigenação do direito, veda-se, consequentemente, uma prestação satisfatória e justa ao cidadão.
O método utilizado foi o indutivo, com a utilização das técnicas do referente, da categoria, jurisprudência, legislação, fichamento e revisão bibliográfica.
Portanto, o presente trabalho tem como objetivo avaliar e ponderar tanto a legislação vigente como a doutrina e jurisprudência sobre o tema para, ao término, proporcionar ao ordenamento jurídico brasileiro, em especial ao direito processual civil, mecanismos que possibilitem uma visão hermenêutica sobre as súmulas vinculantes, uma vez que tais mecanismos se não revistos poderão ocasionar um atraso hermenêutico-processual-humanista de proporções gigantescas.
1 A ORIGEM DO DIREITO SUMULAR
O Estado, ao longo dos anos vem se debatendo com uma questão cada vez mais comum e inadequada, que se refere, especialmente, pela ineficiência e ineficácia do sistema judiciário brasileiro, devido ao grande fluxo de processos em nossos tribunais, o que não permite a entrega de uma solução jurisdicional célere e expedita.
Primeiramente, faz-se, neste momento, necessária a conceituação da palavra súmula, que tem sua origem no vocábulo latim summula, que significa sumário ou resumo, isso é, em linhas simples são ementas, enunciados que buscam revelar a orientação jurisprudencial de um tribunal em relação a casos análogos, semelhantes, iguais.
A esse respeito, busca-se com as súmulas vinculantes fortalecer a verdadeira função do Direito, que, via Poder Judiciário, deve cumprir o seu papel em relação aos conflitos de interesses presentes na sociedade da melhor forma possível, pois não se trata de uma crise momentânea ou passageira, visto que o problema se agrava ano a ano em proporções geométricas, sem que se tenha uma solução eficaz para tal problema, o que, certamente, poderá levar ao colapso do modelo e mecanismo atual.
As súmulas, que foram criadas em 1963, pelo então Ministro Victor Nunes Leal, até então, obrigavam apenas o órgão julgador que as emite a segui-las. Contudo, com o advento da Emenda Constitucional nº 45, em dezembro de 2004, as súmulas passaram a ter validade para todos, conforme a redação do artigo 103-A, da Constituição Federal, que ainda estipula que tais poderes vinculantes, também para a própria administração pública direta e indireta em todas as suas esferas.
Todavia, o Professor Streck, nos traz passagem diversa e esclarece que a busca por uma uniformização de jurisprudências é presente em nosso ordenamento jurídico desde o tempo do Império, ao afirmar que:
Durante o Império, várias leis regularam no Brasil o regime jurídico dos assentos[1]. A Lei nº 2.684, de 23.10.1875, reconheceu a validade dos assentos da Casa de Suplicação de Lisboa, depois da criação da do Rio de Janeiro até a época da Independência. O Decreto nº 6.142, de 10.3.1876, estabeleceu que, para que fossem reconhecidos, era indispensável que os julgamentos causadores da divergência já tivessem sido proferidos em processos findos e que a divergência já tivesse por objeto o Direito em tese ou disposição de lei, e não a variedade da aplicação proveniente da variedade dos fatos. E no artigo 3º ressaltou que os assentos tomados não prejudicassem os casos julgados contra ou conforme a doutrina que estabeleceram[2].
O direito sumular ou, mais propriamente as súmulas vinculantes são características dos países do common law, aonde a lei não somente têm o escopo de solucionar os conflitos existentes, bem como de estabelecer precedentes e, assim, preservar a continuidade dos julgamentos, fazendo com que deste modo produza equilíbrio, harmonia e segurança aos jurisdicionados, posto que visa preservar a igualdade de tratamento perante as Cortes.
De outra banda, a súmula aparece na lei somente em 1973, com o Código de Processo Civil, em seu artigo 479, que tem a seguinte redação:
Art. 479 - O julgamento, tomado pelo voto da maioria absoluta dos membros que integram o tribunal, será objeto de súmula e constituirá precedente na uniformização da jurisprudência.
Parágrafo único - Os regimentos internos disporão sobre a publicação no órgão oficial das súmulas de jurisprudência predominante.
Assim, a legislação processual civil, não seguiu as linhas dos assentos existentes no Direito Português, visto a sua inconstitucionalidade de conferir obrigatoriedade ás súmulas. Todavia, com a Emenda Constitucional nº 45, em dezembro de 2004, ao acrescentar o artigo 103-A, que implantou as súmulas vinculantes, sendo que a partir de sua publicação deverão ser seguidas pelo Poder Judiciário e a Administração Pública em todas as suas esferas.
Assim, passa-se a examinar se as súmulas terão caráter de inovação produtiva para o nosso sistema jurídico ou, novamente, trata-se de meros mecanismos de controle e manipulação dos Tribunais Superiores, que como sabemos muitas vezes emitem julgamentos de cunho político descomprometidos do saber jurídico.
2 AS SÚMULAS NO ORDENAMENTO JURÍDICO E SEU PAPEL NO PODER JUDICIÁRIO
Vários são os sentidos que se pode retirar da palavra ‘jurisprudência’, contudo o que nos interessa é aquele que o qualifica como o conjunto de sentenças uniformes. Isso é, a definição de firmar jurisprudência sobre tal tema ou, pelo contrário, de negar jurisprudência.
A conceituação é bem posta por Maximiliano quando afirma com inteligência que:
Chama-se Jurisprudência, em geral, ao conjunto das soluções dadas pelos tribunais às questões de Direito; relativamente a um caso particular, denomina-se jurisprudência a decisão constante e uniforme dos tribunais sobre determinado ponto de Direito[3].
Contudo, o que se faz pertinente neste momento é como as súmulas tanto de caráter persuasivo quanto às de poder vinculante serão recebidas em nosso ordenamento. Isso porque, nessa constatação, tão simples quanto importante, reside à chave para entender-se a impossibilidade de se transplantar mecanicamente o sistema normativo de um povo para outro, ou de se universalizar um determinado sistema[4].
O que se percebe, claramente, é que nossos juristas buscam através da súmula o mesmo resultado encontrado nos países do common law, ou seja, esperam que nossa jurisprudência reedite o stare decisis et non quieta movere (“mantenha-se a decisão e não se perturbe o que foi decidido”). No entanto, com o advento das súmulas, principalmente, as de efeito vinculante, percebe-se notoriamente que a função do juiz passará – simplesmente – para um mero subordinado do Supremo Tribunal Federal.
De outro lado, a implementação das súmulas vinculantes, irão impedir que os Tribunais passem a ter entendimento diferente daquele adotado pela súmula, isso é, a jurisprudência, não é, pois, a decisão isolada de um tribunal: é uma espécie de consolidação do saber difuso, um certo consenso interpretativo, progressivo e inacabado do ordenamento[5] e, não, um ato de decisão isolado do Supremo Tribunal Federal, ignorando os demais Tribunais e juízes.
Assim, as súmulas com os seus efeitos vinculantes, tão-somente, irão restringir o universo interpretativo aberto, tanto as partes como e, principalmente, aos juízes, visto que estes ficarão alusivos por aquela interpretação (súmula) superior e já estabelecida.
Ao lecionar sobre o tema, o doutrinador Cunha citando Karl Larenz, manifestou o seguinte posicionamento:
O juiz está na nossa ordem jurídica vinculado às leis e ao direito constitucional, mas é livre na interpretação da lei e no desenvolvimento do Direito conforme ao seu sentido. Nessa tarefa só tem de seguir a sua proporia convicção, formada conscienciosamente. Daí resulta que o que pode ‘vinculá-lo’ não é o precedente enquanto tal, mas sim e só a interpretação ou concretização ‘correta’ da norma, que nele porventura se exprimam. Se a interpretação ou concretização da lei contida no precedente é correta, porém, é ponto que cada juiz há-de, em princípio, decidir pó si próprio e em cada novo caso, visto que o precedente não lhe pode tirar a responsabilidade pela correção da sua decisão. O juiz não tem, pois apenas o direito, está até obrigado a divergir de um precedente, sempre que chegue à convicção de que ele traduz uma incorreta interpretação ou desenvolvimento da lei, ou de que a questão, então corretamente resolvida, deve hoje – mercê de uma mudança de significado da norma ou de uma alteração fundamental das circunstâncias relevantes para a sua interpretação – ser resolvida de outro modo[6].
Deste modo, nota-se, que enquanto fenômeno cultural, o Direito resulta de um povo e a ele mantém-se ligado numa relação de duplo sentido, influenciado e sendo influenciado[7]. Portanto, o viável é que suas decisões sejam de aplicabilidade geral e não restritas a imposições superiores.
2.1 Os efeitos favoráveis da imposição das Súmulas
Não se pretende aqui, conspirar em vão contra a renovação ou ser contrário à oxigenação permanente do direito. Pelo contrário, dever-se-á ter em mente que sendo o cidadão o destinatário das normas jurídicas, em sua constante luta na busca de seu bem-estar (leia-se e entenda-se como sua busca pelo Direito), é legítimo questionar acerca das inovações que efetivamente demonstram condizerem-se por caminhos que levem ao cidadão uma real utilidade[8].
2.1.1 A multiplicação de demandas repetidas e o acúmulo de ações nos Tribunais
Com o passar dos anos a civilização cresceu de tal forma e com ela os mais variados problemas sociais, muitos deles, ou melhor, a imensa maioria deles, só é possível ver uma solução através da coerção do Estado, ou seja, somente consegue-se encontrar meios capazes de resolver a questão sócio-cultural, por intermédio do Estado, que via Poder Judiciário devolve ao cidadão o seu direito, assim, finalmente alcançando justiça.
Devido a essa caça, cada vez mais rotineira em busca da tutela jurisdicional, o Poder Judiciário se viu diante de graves e, porque não, irremediáveis problemas, quais sejam: a multiplicação de demandas repetidas e o acumulo de ações nos tribunais. Acerca destas questões, Dallari expressa com muita propriedade alguns dos motivos que levam a tal situação, ao lecionar que:
Como acontece em muitos outros países, inclusive em alguns exportadores de teorias e modelos jurídicos, o Brasil tem muitos bons juízes e não tem um bom Poder Judiciário. Na realidade, os três Poderes que compõem o sistema brasileiro de governo apresentam falhas e vícios que comprometem sua eficiência e deixam amplos caminhos abertos para audaciosos, oportunistas, indivíduos que buscam sempre um proveito pessoal sem considerar barreiras éticas.
(...) Deste modo, devido a enormes inadequações, tanto de parte do judiciário como daqueles que vão ao seu encontro, o Poder Judiciário encontra-se deslocado no tempo, isso é, mesmo trabalhando muito produz pouco, impedindo assim que se produza justiça e tendo como ponto fúnebre a total falta de celeridade e equidade na resolução dos conflitos[9].
Assim, a inclusão das súmulas vinculantes no ordenamento jurídico brasileiro é, antes de qualquer coisa, uma alternativa do Estado em tornar eficaz uma garantia constitucional, prestada pelo Poder Judiciário, qual seja: a celeridade processual, todavia, sem esquecer jamais que uma justiça célere é comprometida com a própria essência de justiça, isso é, o fiel exercício do acesso à jurisdição, fazendo com que a notória morosidade existente deixe de fazer parte integrante do sistema judiciário vigente.
2.1.2 A existência de decisões conflitantes sobre o mesmo tema
O propósito da vinculação das decisões é a uniformidade de entendimento jurisprudencial fortalece a autoridade do Judiciário, em outras palavras isso quer dizer que, o que se busca com o efeito vinculante das súmulas é poupar as partes, oportunizando um litígio mais ágil, contudo, que tenha solidez. É proporcionar ao Poder Judiciário uma redução de custos e evitando – assim – o desperdício de tempo, na medida em que juizes continuem a julgar questões idênticas, sobre fatos e teses jurídicas já analisadas repetidas vezes pelo Supremo Tribunal Federal.
Sobre esse aspecto, Wambier destaca com muita felicidade o posicionamento da Ministra Ellen Gracie Northfleet, ao sustentar que:
Alinho-me entre os que acreditam que a maior das questões trazidas ao foro, especialmente ao foro federal, são causas repetitivas, onde, embora diversas as partes e seus patronos, a lide jurídica é sempre a mesma. São causas que se contam aos milhares em todo o País e pacificadas pela jurisprudência. Como, por exemplo, as devoluções de empréstimos compulsórios, as causas em que se busca a correção monetária dos salários de contribuição... entre inúmeras outras.
É impossível sustentar que processos dessa natureza devam prosseguir congestionando o Judiciário e percorrendo suas diversas instâncias na sucessão, quase interminável, dos recursos colocados à disposição das partes pela legislação processual. Nenhum progresso para a ciência jurídica resultará do julgamento desses feitos. Eles nada mais são do que uma reprodução de peças padronizadas. Da petição inicial ao acórdão derradeiro, nada será acrescentado ao entendimento que já se cristalizou a respeito da matéria. É inútil e custoso manter a máquina judiciária ocupada com questões que já não oferecem relevo ou dificuldade. Mais que isso, tal atitude desvia atenção e recursos do Judiciário, os quais deveriam estar melhor aplicados nas questões que têm maior atualidade e demandam reflexão e atividade criativa por parte dos magistrados[10].
Portanto, com o intuito de finalmente por fim a repetição inútil de julgados, com decisões conflitantes e buscando proporcionar uma ampla segurança jurídica é que se torna viável o efeito vinculante as súmulas, desta forma, estás (às súmulas vinculantes) ganham força de lei, uma vez que obrigam os juízes de instâncias inferiores a aceitarem o entendimento do Supremo Tribunal Federal. Fazendo, com que todos aqueles que busquem no Judiciário uma solução justa, tenham o mesmo tratamento e solução, quando estiverem diante de casos idênticos.
2.2 Os efeitos contrários à imposição das Súmulas
Não se pretende negar que o sistema processual, não importando sua esfera, é lento e em grande parte, ineficaz. Contudo, não é aprisionando o judiciário via súmula vinculante que se resolverá o problema. Deve-se ter em conta que a própria corrente histórica-evolutiva do Poder Judiciário, em sua maioria absoluta no campo da Hermenêutica Jurídica, aparece a jurisprudência como elemento de formação e aperfeiçoamento do direito[11]. Assim, transformar a jurisprudência em súmula vinculante, para então, subordinar toda a cadeia judiciária em prol do Supremo Tribunal Federal, é suicidar a criação do próprio Direito.
A morosidade e lentidão atribuída pelos defensores do efeito vinculante das súmulas, não reside no fato do Judiciário não ser célere e ágil. O problema é outro. Reside no fato de nossos tribunais, em especial as duas maiores cortes do Estado, a corte encarregada de defender a Constituição Federal, qual seja: o Supremo Tribunal Federal e, de outro lado, o ente fiscalizador da Lei Federal, o Superior Tribunal de Justiça, estarem mais preocupados com política e com o positivismo arcaico e triste, que embasam suas decisões.
O ilustre doutrinador Dallari em sua obra clássica “O Poder dos Juíses”, com muita astúcia e propriedade, assim destaca:
A primeira grande reforma que deve ocorrer no Judiciário, e sem dúvida a mais importante de todas, é a mudança de mentalidade. Embora se tenha tornado habitual, na linguagem comum do povo, a referência ao Judiciário como sendo “a Justiça”, o fato é que na grande maioria das decisões judiciais, sobretudo dos tribunais superiores dos Estados e do país, fica evidente que existe preocupação bem maior com a legalidade do que com a justiça.
(...) São freqüentes as sentenças e os acórdãos dos tribunais recheados de citações eruditas, escritos em linguagem rebuscada e centrados na discussão de formalidade processuais, dando pouca ou nenhuma importância à questão da Justiça.
Com alguma consciência esse juiz perceberia a contradição de um juiz-escravo e saberia que um julgador só poderá ser justo se for independente. Um juiz não pode ser escravo de ninguém nem de nada, nem mesmo da lei[12].
Assim, o que se precisa – primeiro – é a ponderação de toda a sociedade, em particular, a jurídica, para que se tire a venda dos olhos daqueles encarregados de confeccionar a lei, pois o problema crucial do Poder Judiciário não está na sua prestação tardia. Sim, esta é uma das graves e difíceis questões a serem enfrentadas, contudo, não a mais importante. O fator principal para que se tenha e mantenha um Judiciário eficaz, confiável e sólido é, antes de tudo, atacar as causas que originaram tamanha inutilidade ao sistema jurídico.
2.2.1 O livre convencimento da Magistratura
A (in)dependência da magistratura é o princípio norteador do amparo jurisdicional por parte do Estado, ligando-se a isso, todos os demais elementos que possam viabilizar de forma concreta e concludente a prestação judicial, quais sejam: um ambiente adequado de trabalho, tanto de profissionais preparados e conscientes de suas responsabilidades, quanto materialmente bem aparelhado.
Não se pretende aqui, utopicamente, defender uma demagogia torpe e irreal quanto aos direitos e obrigações da magistratura para o Poder Judiciário e deste, para o cidadão, usufruidor do sistema. Vislumbra-se, isso sim, que detenha a magistratura requisitos mínimos de direitos, pois somente assim, com independência laboral é que se terá da magistratura juízes imparciais, tendo sempre como norte a solução justa e eqüitativa das demandas judiciais. O livre convencimento do juiz é princípio norteador do direito processual e garantia constitucional, prevista – justamente – para que o julgador não se prenda a imperfeição cega do texto legal.
O livre convencimento do juiz, princípio base do ordenamento jurídico está disposto no artigo 131, do Código de Processo Civil que assim conceitua:
Art. 131 – O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes, mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento.
Tem-se que o Estado, ao impor o efeito vinculante através do Supremo Tribunal Federal estará, diga-se de passagem, utilizando-se, como ocorria no Estado Absolutista, de uma falsa democracia. Em outras palavras, as súmulas com poder vinculante farão do juiz, nada mais que um servidor delegado da Corte Constitucional, isso é, supressão do direito dos juízes de dizerem o Direito no caso concreto, pois esse interprete será, exclusivamente, o Supremo Tribunal Federal[13].
Ao dissertar sobre a necessidade de interpretação do juiz, o professor e brilhante doutrinador Cappelletti, com tamanha felicidade ensina que:
Tais questões e incertezas devem ser resolvidas pelo intérprete. Deve ele preencher as lacunas, precisar as nuances, esclarecer as ambigüidades. Para fazer isso, deve fazer escolhas, pois onde existe dúvida, não é suficiente o simples instrumento da lógica, e os juízes, mesmo de maneira inata ou oculta, são chamados a exercer a soberana prerrogativa d escolha.
E na verdade, o intérprete é chamado a dar vida nova a um texto que por si mesmo é morto, mero símbolo do ato de vida de outra pessoa[14].
O brilhante professor vai além e fecha citando Lord Radcliffe:
O juiz bem pode se empenhar na mais estrita adesão ao princípio de respeitar rigorosamente os precedentes; bem pode concluir toda tarde sua própria jornada de trabalho na convicção de nada haver dito nem decidido senão em perfeita concordância com o que os seus predecessores disseram ou decidiram antes dele. Mas ainda assim, quando repete as mesmas palavras de seus predecessores, assumem elas na sua boca significado materialmente diverso, pelo simples fato de que o homem do século XX não tem o poder de falar com o mesmo tom e inflexão do homem do século XVII, XVIII ou XIX. O contexto é diverso; a situação referencial é diversa; e seja qual for a intenção do juiz, as sacras palavras da autoridade se tomam, quando repetidas na sua linguagem, moedas de nova cunhagem. Neste sentido limitado, bem se pode dizer que o tempo nos usa a nós todos como instrumento de inovação[15].
Nesta esteira, De Sá, também é contrária a adoção de súmulas vinculantes e reforça o posicionamento de liberdade do juiz, ao afirmar que:
Transmutando-se em regra a súmula, a atividade do juiz, sempre criadora em benefício do direito e da justiça, estaria reduzida à “... de um simples conferente dos fatos à súmula, manietando-o contra os ditames de sua consciência”.
Sua independência fundamental à manutenção do Estado Democrático de Direito, estaria seriamente comprometida, inibido seu livre pensamento, impedida sua participação no processo de formação e reconstrução da ordem jurídica.
A sumulação atenderia à burocratização da justiça, cercearia a vontade do juiz e o transformaria num autômato sem identidade, enfraquecendo-o e a todo o sistema.
E, num confronto com o que se afigura, hoje, como papel indeclinável a ser exercido pelo juiz, estar-se-ia reeditando o modelo positivista rígido, cabendo ao magistrado ser, novamente, “a boca que pronuncia as palavras da lei” que, desta feita, estaria previamente interpretada pelos tribunais superiores[16].
Deste modo, portanto, a independência do magistrado se faz, absolutamente, necessária, visto que somente assim, os avanços consolidados em busca da justiça sejam preservados. Tem o juiz, o dever e obrigação de lutar pelo livre convencimento causa a causa, fazendo prevalecer, em cada caso, os reais princípios de direito.
Dallari sustenta que por esses motivos, deve ser dado todo o apoio para que a magistratura possa conquistar e manter sua independência, que deve ser institucional, concreta e bem protegida dos efeitos de eventuais oscilações políticas[17].
Percebe-se, claramente, que amarrar as mãos dos juízes via súmula vinculante é uma criação que não se compactua com a democracia, vindo, tão-somente, a proporcionar a coesão ideológica do sistema.
Sem olvidar os ensinamentos de Streck, a esse tema quando diz:
Trocar a independência dos juízes pelo desafogo dos processos... é um preço exageradamente alto a ser pago por todos nós. Ou seja, ao acreditarem na simplista tese de que o desafogo do aparelho judiciário depende de drástica providência do tipo “vinculação sumular”, os operadores do Direito agem como aquele cidadão que perdeu seu relógio em meio a uma praça escura e, ao invés de procurá-lo nas imediações de onde o perdera, pões-se a procurá-lo, comodamente, embaixo de um iluminado poste de luz... Perguntado do motivo de tal atitude – porque à evidência, inútil – o cidadão responde: - É bem mais fácil procurar aqui... [18].
Por sua vez, o renomado jurista gaúcho Baptista da Silva, ao enfrentar a matéria, com inteligência e razoabilidade, expõe que a uniformização da jurisprudência não é nem possível e nem desejável, na medida que o ordenamento jurídico não é pleno e nem o ato judicial está totalmente despido de violação, pressupondo o contrário um ideal afeito à doutrina da separação de poderes em sua previsão mais pura e conclui sustentado que a jurisprudência como fonte criadora do direito, está ou deve estar comprometida com os juízos de verossimilhança, correspondente, por sua vez, às verdades contingentes, o que afasta qualquer pretensão de uniformização ou generalização[19].
Portanto, a magistratura independente é fator de sobrevivência do judiciário, pois neutralizar o livre convencimento do juiz é resgatar o obsoleto e antiquado positivismo, que nada tem em contribuir com o atual estágio do Poder Judiciário. Isso quer dizer, o juiz deve, acima de tudo, se ater com o compromisso de agir com firmeza e coragem para realização da justiça, rompendo a barreira oligárquica da magistratura dos tempos do Império, desfazendo a crença da burocracia fútil e torpe dos caciques das cortes superiores, prevalecendo – única e exclusivamente – a busca incessante da justiça.
2.2.2 A fábrica de liminares
O Direito como ciência social que é, por sua natureza, está aberto a interpretação e é natural que assim o seja, uma vez que somente os fatos de interesses para a sociedade serão legislados e/ou codificados.
Nesta esteira sobre quais fatos, condutas e interesses sociais (tanto de ordem pública quanto particular) é que estão amparadas as condutas ilegais e inconstitucionais do governo. Diante dessa ótica, muitos dos defensores das súmulas vinculantes sustentavam sua opinião no mesquinho argumento que é preciso acabar com o aumento desenfreado das medidas liminares.
Não se pode, isso sim, ser favorável a implementação das súmulas vinculantes porque o órgão julgador está a receber milhares de processos por ano. Nota-se que o problema é outro é a falta de respeito, principalmente, da Administração Pública (leia-se e entenda-se como Executivo) que ao procrastinar a solução aos atos administrativos, gera efeitos danosos aos cidadãos e estes, não podem ser compelidos a não receber o amparo jurisdicional que lhes é devido e defeso na Constituição Federal.
De outro lado, aceitando tal argumento, qual seja: o de buscar com a súmula vinculante a redução do volume de trabalho do Supremo Tribunal Federal estar-se-á sendo conivente com a injustiça. Isso é não se cogita o aumento de número de ministro na corte constitucional, ou talvez, de redução das suas competências, pois preferem estes, preservar, a histórica tradição de onze ministros, como num ritual sagrado, do que verem o tribunal se adequar aos parâmetros da sociedade moderna. Em linhas simples significa, buscam os defensores de a súmula vinculante ser a petrificação, quase que religiosa, do órgão jurisdicional maior do Estado à supressão dos direitos de todos os cidadãos, isso é, proíbem a divergência jurisprudencial, para que os ditos ministros do Supremo Tribunal Federal recebam menor número de casos para julgarem[20].
Outro fator importantíssimo na dita ‘fábrica de liminares’ por parte, sobretudo, do juiz de primeiro grau é a desculpa descarada que o judiciário está “entupido” devido à indústria de liminares. Todavia, ao conceder a medida liminar, os juízes, nada mais fazem do quer prestar o devido amparo judicial a eles solicitado, isso é, ao conceder tal medida, o magistrado está acima de tudo coibindo o ato ilegal de autoridade, que do ponto de vista dele (juiz), foi praticado com abuso e ilegalidade de poder, dando ao cidadão, tão-somente, a proteção que este buscou no Poder Judiciário.
Nesta ótica, vale o posicionamento do ministro Fux, do Superior Tribunal de Justiça ao afirmar que:
O decurso do tempo diante do direito evidente sem resposta por si só representa uma "lesão". Ademais, a fórmula constitucional da inafastabilidade da jurisdição foi ditada para "entrar em ação" tão logo descumprido o direito objetivo. Assim, desrespeitado o direito evidente, deve incidir a garantia judicial, que variará na sua efetivação conforme a lesão seja evidente ou duvidosa[21].
A propósito da concessão da medida liminar, aduz Dallari:
De fato, liminares foram concedidas em grande número, por ter aumentado consideravelmente o volume das solicitações aos juízes. Por motivos mais que óbvios, os governantes cujos atos tiveram seus efeitos sustados por aquelas liminares ficaram contrariados com essas decisões judiciais e, demonstrando despreparo para a democracia e o respeito ao direito, atribuíram a multiplicação de liminares a uma suposta “indústria de liminares”. Com efeito, se alguém quiser argumentar com a idéia de uma indústria de liminares é preciso lembrar que não existe indústria sem matéria-prima. E no caso das liminares em mandados de segurança, a matéria-prima são os atos inconstitucionais e ilegais do Poder Executivo. Basta que este respeite a Constituição e as leis para que aquela indústria desapareça[22].
Nota-se, por conseguinte, que os motivos alegados e sustentados para que a súmula vinculante seja adotada – como realmente foi – são acima de tudo, de uma angustiante e triste argumentação. Pois, o aumento no número de processos que chegam ao Supremo Tribunal Federal não é se não outro que, o povo a se ver sem alternativas para buscar os seus direitos, passou a buscá-los na via judicial e a probabilidade de certeza do direito alegado, aliada à injustificada demora que o processo ordinário até a satisfação do interesse do demandante, com grave desprestígio para o Poder Judiciário, posto que injusta a espera determinada. Assim sendo, é natural que o Supremo Tribunal Federal tenha um número considerável de processos, frente às aberrações patrocinadas, em especial, pelo Poder Executivo, devendo sempre, almejar a efetividade do processo e não cercear a espontânea formação da jurisprudência, nem a renovação do Direito.
3 O CHOQUE DA JURISPRUDÊNCIA DIVERGENTE FACE À SÚMULA VINCULANTE
O grande entrave travado na discussão de se adotar ou não a súmula vinculante consiste no choque desta com a jurisprudência divergente. Doutrinadores e juristas de ambas as correntes (aquelas visando à adoção ou negativa da súmula), justificam suas teses nesse sentido, uns justamente visando abolir a jurisprudência divergente outros a defendendo, como meio constitucional do livre convencimento do juiz.
A sociedade moderna vive diante de um paradoxo. Isso é, nunca em toda a história, houve uma procura tão intensa e urgencial pelo Poder Judiciário como agora, e aí se encontra o problema, pois essa procura desenfreada pela via judicial proporcionou duas janelas bem distintas, e neste ponto que se acha amparado o paradoxo. Em outras palavras, nunca se viveu evolução tão marcante no campo do processo e na esfera do Judiciário e, por outro lado, aquilo que chamamos como a crise da justiça.
Esses dois pontos – evolução no campo processual e crise de justiça – são os pontos basilares do retrocesso processual implantado com a súmula vinculante. Utilizo-me das palavras do Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, ao dissertar sobre tal aspecto:
Preocupações sociais e inquietações de ordem política, ao lado de novas concepções científicas, vêm levando o processo civil a um extraordinário desenvolvimento, tendo por bandeira a Instrumentalidade e por norte a efetividade, avultando suas tendências à internacionalização, a priorizar o social, a buscar a realização do direito substancial e a assegurar os direitos fundamentais do homem[23].
Todavia, esse mesmo procedimento que evoluiu como ciência e mecanismo de justiça e amparo social, se vê, nos tempos modernos, incapaz ser o instrumento eficiente e eficaz a ponto de proporcionar aos seus usuários (cidadãos) uma real prestação de seus direitos, capaz de responder às angústias do mundo atual, fator responsável, diretamente, pela implementação da súmula vinculante no Poder Judiciário Brasileiro.
Assim, por não poder cumprir o papel de prestar a Justiça, o judiciário vem sofrendo reformas após reformas, com o intuito único de corresponder aos anseios da sociedade, a fim de que possibilite não o fim, mas redução de forma significativa à morosidade existente.
Uma destas reformas corresponde à súmula vinculante, entretanto, esquecem os estudiosos que a problemática vivenciada, hoje, no Poder Judiciário, não diz somente a sua má prestação jurisdicional, mas sim compreendida numa falência organizacional do Estado, que não vislumbra melhores condições em nenhuma outra face da necessária assistência social por ele devido, uma vez que a sociedade aumenta espantosamente e o Estado não investe em recursos humanos capacitados para o desenvolvimento prestacional devido. Há, ainda, um investimento zero nos recursos materiais a disposição do judiciário, bem como a manutenção do um modelo ultrapassado e sem planejamento algum visando dar nova vida ao sistema.
Deste modo, devido à morte organizacional do sistema vigente, está a raiz da súmula com eficácia jurídica obrigatória, vinculante. Tal súmula é tida, por seus defensores, como solução para todos os problemas vividos pelo judiciário, tendo em vista que sua adoção será de forma cogente para todas as esferas judiciais.
Portanto, a unificação da jurisprudência, defendida pela súmula vinculante, defende o princípio básico que ações, ou melhor, que muitas demandas idênticas levadas ao judiciário, versando sobre a mesma tese jurídica e com os mesmos fundamentos e recebendo, muitas vezes, soluções conflitantes, criadoras de insegurança e perplexidade, em desprestígio para o Judiciário e intranqüilidade para o meio social.
No entanto, deve-se ater a um princípio básico ao analisar a unificação da jurisprudência a partir das decisões do Supremo Tribunal Federal, qual seja: há necessidade sim de um judiciário mais ágil e célere, porém sem que isso represente ameaças ou violações de direitos, liberdades e garantias[24]. Assim, o direito de ter assegurado um razoável tempo de duração do processo[25], não é a forma democrática, estabelecida num Estado Democrático de Direito, de fazer com que através das súmulas vinculantes obriguem os magistrados a aplicarem de forma mecânica e desprovida de justiça a jurisprudência obrigatória ditada pela Corte Suprema, pois ha de se analisar que o processo observe os procedimentos constitucionais adequados, caso a caso, pois todos tem assegurados os procedimentos, defesa (através dos mais variados meios de provas), recursos, etc.
4 UMA (DIS)SOLUÇÃO JURÍDICA
O problema do Poder Judiciário, antes de ser rotulado como inoperante ou conivente com a morosidade, é acima de tudo um problema político. O mestre Cunha, com brilhantismo destaca esse problema ao asseverar que:
Fixar-se no problema técnico e ignorar o político significa instrumentalizar o judiciário a serviço do poder político. Essa instrumentalização do judiciário corre paralela à do Direito, que reduzido à técnica jurídica representa a transposição para a prática estatal, das relações autocráticas vigentes no modo econômico de produção[26].
Percebe-se, isso sim, o desejo de todos os operadores do Direito, sejam eles magistrados, advogados, professores o desejo explícito de encontrar uma solução viável e corajosa, com o objetivo único de solucionar o problema existente. A pergunta que paira no ar é se a sumulação vinculante dada à jurisprudência é uma (dis)solução jurídica?
Nesse sentido, cita-se Mancuso fazendo uso das palavras de Arnaldo Vasconsellos, quando refere que aquilo que os tribunais aplicam, na realidade, não é a lei, mas sua particular interpretação. Se assim, acontece, torna-se mais importante não propriamente o que a lei parece ter pretendido dizer, mas o que os tribunais firmam que realmente ela diz[27]. Seguindo esse raciocínio, é correto afirmar – sem sombras de dúvida – que o direito sumular é uma (dis)solução jurídica, pois restringi a criação do direito pela jurisprudência, obstaculizando o seu progresso, ocasionando o retrocesso processual.
Por outro lado, há de se pensar na necessidade de tornar a Justiça mais ágil e eficiente, impedindo a multiplicidade de demandas e recursos sobre teses jurídicas absolutamente idênticas, afastando o perigo das decisões colidentes.
Destarte, deve-se abandonar a doce ilusão que a norma (leia-se qualquer provimento, decreto, lei, etc) por mais que seja, absolutamente, clara será banida de dúvida. Pensar, deste modo, é viver utopicamente, é construir um mundo de quimera e fantasia, pois dispensar a tarefa, ou melhor, proibir que a magistratura interprete uma norma é proibir o avanço, conter o que de melhor e mais eficiente existe no judiciário, que é busca em cada caso de da melhor justiça. Isso é, fazendo uso das palavras do mestre Rui Barbosa, um “crime de hermenêutica”, sustentando a tese da autonomia intelectual do juiz, para que não se converta 'em espelho inerte dos tribunais superiores'[28].
Sem olvidar os ensinamentos de Streck ao alertar que:
Na realidade, o Judiciário brasileiro não é lento porque as Súmulas ou as jurisprudências não vinculam/obrigam, formal ou informalmente as instâncias inferiores (já sustentamos que, graças ao art. 38 da Lei 8.038 as Súmulas já vinculam!), mas sim, porque está assentado sobre uma estrutura arcaica e burocrática, permeada por um imaginário conservador, fruto de uma fortíssima crise de paradigma pela qual passa a dogmática jurídica. E é justamente no contexto dessa crise de paradigma – (re)alimentada/impulsionada por políticas legislativas ad-hoc – que podemos ter a certeza de que, uma vez aprovado o mecanismo constitucional da vinculação sumular, logo surgirão novas tentativas, talvez até mais “sofisticadas” do que estas que estão em discussão no Congresso Nacional, objetivando manipular e amordaçar, ainda mais, os operadores jurídicos e as instâncias inferiores do Judiciário.
(...) Agregue-se, por relevante, que nada nos garante que a vinculação sumular-jurisprudencial terá o condão de desafogar a máquina judiciária. Há um equivoco dos que pensam que o emperramento dos processos será resolvido dessa maneira... há que se perguntar: quem dirá (e como isso será feito?) que o caso em julgamento – suscetível da aplicação do “precedente sumular” – é similar ao outro, que originou o aludido “precedente’?
(...) Por isso, não é temerário afirmar que a introdução do efeito vinculante no Brasil, mormente por emenda constitucional, representará um retrocesso historio-político-jurídico. Isso porque, assim como ocorria nos assentos portugueses, as Súmulas se desvinculam na sua formulação do caso jurídico que as engendrou. Diferentemente da common law, as Súmulas se independizam do contexto histórico. A análise do Direito passa a ser a histórica, e o processo de interpretação, um jogo de cartas marcadas[29].
Portanto, sumular o direito de modo vinculante cerceando o direito a interpretação dos juízes, impedindo, assim, a harmonização pacífica e justa dos conflitos levados até o Poder Judiciário é a forma vil da própria denegação da jurisprudência.
CONCLUSÃO
A adoção da súmula vinculante, umas das reformas do Judiciário, veio a proporcionar ao Estado uma forma de controle processual, pois com a obrigatoriedade das súmulas de efeito vinculante estão judiciário e administração pública, presos nas decisões do Supremo Tribunal Federal.
A celeridade processual e a divergência conflitante de jurisprudências foram teses centrais na defesa das súmulas vinculantes, juntamente com o propósito de conter o aumento desenfreado de processos e recursos, tidos protelatórios, que chegam aos milhares nos tribunais superiores.
De outra banda, a jurisprudência sumulada e, com efeito, vinculante em nada tem a beneficiar o Direito, o Estado e, tão pouco, o cidadão. Isso é, a implementação das súmulas vinculantes, irão impedir que os Tribunais passem a ter entendimento diferente daquele adotado pelo Supremo Tribunal Federal, ocasionando, assim, um retrocesso processual.
Deste modo, o juiz não tem, pois apenas o direito, está até obrigado a divergir de um precedente, sempre que chegue à convicção de que ele traduz uma incorreta interpretação, fazendo, portanto, a justiça no caso concreto.
Cabe agora aos doutrinadores e à jurisprudência buscar desfazer a distinção errônea dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004 e da Lei nº 11.417, de 2006, que ao estipularem a súmula vinculante, não a fizeram com base nos princípios processuais vigentes, tais como o livre convencimento do magistrado e o direito de buscar no judiciário o seu direito.
Deveria tais dispositivos terem implementados a súmula de caráter obrigatório de forma distinta, ou seja, deveria a súmula manter o caráter de persuasão que até o advento da Emenda Constitucional detinha, pois assim não estaria o magistrado aleijado de dizer o direito, de fazer justiça, de promover no caso concreto após analisar o conflito, o melhor solução.
Nesta ótica, não reconheceu o legislador ao promulgar a Emenda Constitucional nº 45/2004 e a Lei 11.417/2006, a (in)dependência da magistratura como princípio norteador do amparo jurisdicional prestado pelo Estado ao cidadão, tampouco analisou a atividade do juiz, reconhecida como fonte criadora do direito em benefício do direito e da justiça.
Portanto, a sumulação atenderia à burocratização da justiça, não correspondendo com a democracia e o Estado Democrático de Direito, vindo, tão-somente, a proporcionar a coesão ideológica do sistema.
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[1] Ato do Poder Judiciário Português que objetivava dar à lei uma interpretação autêntica, com o intuito de uniformizar a jurisprudência.
[2] STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no Direito Brasileiro: eficácia, poder e função: a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante. 2. ed. rev. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 94.
[3] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 144.
[4] COSTA, Sílvio Nazareno. Súmula Vinculante e Reforma do judiciário. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 6.
[5] CUNHA, Sérgio Sérvulo da. O Efeito Vinculante e os Poderes do Juiz. São Paulo: Saraiva, 1999, p.20.
[6] CUNHA, Sérgio Sérvulo da. O Efeito..., op. cit., p. 134.
[7] COSTA, Sílvio Nazareno. Súmula..., op. cit., p. 6.
[8] SILVA, José Anchieta da. A Súmula de Efeito Vinculante Amplo no Direito Brasileiro: um problema e não uma solução. 1. ed. 2ª tir. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 18.
[9] DALLARI, Dalmo de Abreu. O Poder dos Juízes. 3. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 81.
[10] WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Tereza Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Breves Comentários à Nova Sistemática Processual Civil, 3: Leis 11.382/2006, 11.417/2006, 11.418/2006, 11.341/2006, 11.419/2006, 11.441/2007 e 11.448/2007. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 259-260.
[11] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica..., op. cit., p. 146.
[12] DALLARI, Dalmo de Abreu. O Poder..., op. cit., p. 84.
[13] CUNHA, Sérgio Sérvulo da. O Efeito..., op. cit., p. 160. São tão diversas as funções do juiz no Estado absoluto e no Estado constitucional que temos aí um caso típico de inversão semântica. Na monarquia absoluta, o juiz era delegado, braço mecânico do soberano, e este, o único intérprete autorizado da lei.
[14] CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1993/Reimpressão, 1999, p. 22-3.
[15] CAPPELLETTI, Mauro. Juízes..., op. cit., p. 22-3.
[16] SÁ, Djanira Maria Radamés de. Súmula Vinculante: análise crítica de sua adoção. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 83.
[17] DALLARI, Dalmo de Abreu. O Poder..., op. cit., p. 55.
[18] STRECK, Lenio Luiz. Súmulas..., op. cit., p. 248.
[19] BAPTISTA DA SILVA, Ovídio Araújo. A Função dos Tribunais Superiores: anuário do programa de pós-graduação em direito. São Leopoldo: Centro de Ciências Jurídicas, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 1999, p. 219.
[20] DALLARI, Dalmo de Abreu. O Poder..., op. cit., p. 66.
[21] FUX, Luiz. A Tutela dos Direitos Evidentes. Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, Brasília, ano 2, número 16, abril de 2000. Disponível em:
<http://bdjur.stj.gov.br/dspace/bitstream/2011/894/1/A_Tutela_Dos_Direitos_Evidentes.pdf>. Acesso em: 07 mar. 2008.
[22] DALLARI, Dalmo de Abreu. O Poder..., op. cit., p. 65.
[23] TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. A Súmula e sua Evolução no Brasil. Revista de Trimestral de Jurisprudência dos Estados, São Paulo, v. 179, ano 24, nov./dez. 2000. Disponível em
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[24] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2002, p.499.
[25] O fetiche pela velocidade ou a cinese social não transferem ao legislador a capacidade ou o poder de decidir a questão da duração do processo ao arrepio das garantias das partes e da própria jurisdição. Há um limite do indecidível, barreiras pelas quais não é possível ultrapassar (legislar) sem se violar preceito constitucional. (GOMES, Décio Alonso. (Des)Aceleração Processual: abordagem sobre dromologia na busca do tempo razoável do processo penal. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2007, p. 80.).
[26] CUNHA, Sérgio Sérvulo da. O Efeito..., op. cit., p. 202.
[27] MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência Jurisprudencial e Súmula Vinculante. 2. ed. rev. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 142.
[28] BARBOSA, José Olindo Gil. A Adoção da Súmula Vinculante No Sistema Judicial Brasileiro. Disponível em <http://www.advogado.adv.br/artigos/2004/joseolindogilbarbosa/adocaosumula1.htm>.
Acesso em 03 mar 2008.
[29] STRECK, Lenio Luiz. Súmulas..., op. cit., p. 270-0 e 283-4.